domingo, 22 de novembro de 2009

Mudanças



Após este interregno, venho comunicar aos leitores que mudámos de casa.
A partir deste momento podem encontrar-nos aqui:


Esperemos que o leitor aprecie a mudança.


Nota
aos seguidores deste blogue: ainda não sei como colocar seguidores na plataforma wordpress; nem sei se será possível - por isto, peço desde já desculpa.

Abdel Hayy

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Reflexões entre Brasil e Portugal

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1. Há quem negue, mas não deixa de ser interessante que o Ceará, uma zona desértica do Brasil, tenha um nome tão semelhante ao deserto magrebino: Sahara. Poderiam os mouriscos, viajando nas caravelas e chegados a uma zona cuja paisagem lhes era tão familiar ter atribuído o único nome que descreve essa imensa aridez ardente na sua língua natal? Será, pois, o Ceará, o Sahara do Brasil?

2. Em Portugal, um pouco por todo o lado, há lendas de mouras encantadas, de tesouros dos mouros, de princesas ou príncipes mouros. Há quem diga que o povo “ignorante” atribui a tudo o que seja antigo o atributo de “mouro”. É um facto, mas isso não explica a razão. A razão deve ser uma só: o povo é o guardião da memória “colectiva” do país e, neste caso, aquilo que ali se guarda é a memória de que houve um tempo maravilhoso que este país viveu, um tempo que foi o do Portugal mourisco e, por isso mesmo, também cristão e judeu. A ingratidão e o complexo do discípulo que quer matar o mestre é que fazem com que se acabe por esquecer entre as elites, aquilo que o povo “sabe” muito bem.

Dirão os eruditos que muitas dessas lendas são mesmo pré-românicas, quanto mais pré-islâmicas. Mas o importante aqui não são as lendas, mas o facto de o povo ter revestido essas lendas (por todo o país, de norte a sul!) com uma veste “moura” e não outra. Só quem tiver perdido um mínimo de objectividade é que pode ficar indiferente à quantidade de lendas ligadas a “mouros”.


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sábado, 18 de julho de 2009

«Uma religião na diversidade de ritos»



M
ehmet II
"Una religio in rituum varietate" era o sonho de Nicolau de Cusa, que chega a propor, em 1453, um concílio universal em Jerusalém que procurasse o reconhecimento e o acordo de todas as confissões religiosas ("uma religião") na "diversidade de ritos".
Já, antes, Raimundo Lullio, que escreveu muitas das suas obras em árabe, afirmara que o islão é a religião mais próxima do cristianismo.
Os exemplos de inteligência universal são muitos nos tempos passados; por que esquecemos o melhor dessa época - aquilo com que verdadeiramente devemos aprender - e lembramos, repetindo, o pior? Hoje, quando se procura o "diálogo" entre religiões, está-se a partir já de um ponto de vista laico, sentindo a religião como algo inferior, algo desprovido de valor em si mesmo e que o "bom senso" dos ateus vem "salvar", apelando à "racionalidade", à "razoabilidade". Este discurso da contemporaneidade é altamente corrosivo. O diálogo entre religiões, se tem de existir, é a partir de dentro delas; quem está fora delas não pode ter a compreensão plena do que se trata e mesmo muitos dos que estão "dentro" são apenas a expressão da sua "fé", presos da crença, incapazes, por isso, de se elevar ao plano do intelecto: único "lugar" em que se podem encontrar aquelas almas como os Cusa ou os Lullio ou os Mehmet II.

Os muçulmanos de hoje podiam também lembrar-se dos seus melhores exemplos: para ficarmos na mesma época, o sultão Mehmet II, entrando em Constantinopla (1453), restaurou (note-se!) o Patriarcado Grego Ortodoxo, rodeou-se de sábios e artistas de toda a Europa, protegeu e interessou-se muito pelo cristianismo (que era a religião da sua mãe!!!) e protegeu os judeus.

E o nosso cardeal que julga que "estamos agora a começar o diálogo" inter-religioso...
A nossa tradição, o melhor dela, está no que retivemos da Andaluzia e no modo como soubemos olhar para as outras tradições; o olhar da Igreja, infelizmente, foi - e não devia! - aprisionante, levou-nos a condenar, a queimar, a estigmatizar muitos dos melhores cristãos, dos melhores judeus e dos melhores muçulmanos. Saibamos voltar a olhar por cima dos telhados: seja a partir da torre sineira da igreja, do minarete da mesquita ou daquela yeshiva que fica no piso superior de uma sinagoga. Na diversidade dos ritos, que se reconheça a adoração do mesmo Deus desconhecido.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Henry Corbin, Prisciliano e uma curiosa sugestão de Asín Palacios

Desta vez, gostaria de chamar a atenção para um texto de Henry Corbin em que, lembrando Asín Palacios, se refere uma curiosa afinidade ou prolongamento interior, por assim dizer, entre o priscilianismo e uma escola do sufismo andaluz. As pistas singelas que aqui vou deixando são como lembretes de uma nossa história íntima, sagrada, escondida, que nenhum historiador, com olhos exteriores apenas para o que julga ser "factual", nunca poderá ver, por muito que olhe.
Não nos importa "provar" nada disto, o essencial é que alguns possam aproximar-se e, "por dentro", retomar a herança do Portugal profundo. Esses passarão sempre despercebidos, longe das pequenas guerrinhas, deliberadamente longe de protagonismos e das luzes do exterior. Falarão entre si, encontrar-se-ão em reuniões esporádicas, em Mértola ou na arrábida de Sesimbra ou na arrábida do Porto, na sinagoga de Tomar ou no mosteiro de Alcobaça ou no dodecaedro de Almeida, ou apenas no café Luz Verde. Ninguém saberá que é a eles que se deve a perpetuação de uma certa "presença".
E agora aqui vai o texto referido:

"A primeira questão que se coloca a propósito de Ibn 'Arabî é a de distinguir qual a parte exacta, antes de abandonar definitivamente o Ocidente islâmico, que ele pôde assimilar do esoterismo ismaelita ou de um esoterismo aparentado. Encontram-se indícios disso na sua familiaridade com a escola de Almería e no facto de ter feito um comentário à única obra que chegou até nós de Ibn Qasî, iniciador do movimento dos Murîdîn, no sul de Portugal, onde se reconhecem muitos traços característicos de inspiração xiita-ismaelita. Devemos ter em conta um fenómeno notável e simultâneo, numa e outra extremidades geográficas do esoterismo islâmico: o papel do ensino de um Empédocles, transfigurado em herói da teosofia profética. Na escola de Almería, na Andaluzia, Asín Palacios revelou com cuidado a importância deste neo-empedoclismo, ao mesmo tempo que se comprazia em ver nos discípulos de Ibn Masarra (ob. 319/931) os continuadores da gnose de Prisciliano. Em simultâneo, no Irão, a influência deste mesmo Empédocles se fez sentir tanto num filósofo correspondente de Avicena, Abû'l-Hasan al-'Amirî, como na cosmogonia de Sohravardî e na do Ismaelismo."

in Henry Corbin, L'imagination créatrice dans le soufisme d'Ibn Arabî. S.l.: Aubier, reed. 1993

Este trecho, talvez excessivamente técnico para alguns, não deixa de ser extremamente sugestivo na fecundidade densa das pistas que abre: de que modo a gnose priscilianista se pode ligar com o sufismo andaluz?

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sábado, 23 de maio de 2009

Sábios portugueses das três tradições (VI)

Salomão Molco e o encontro com o cabalista Joseph Caro


Diogo Pires (Lisboa, 1500 - Mântua, 1532), secretário de D. João III, depois da visita a Lisboa do misterioso David Reubeni, vindo da Arábia, mudou de nome para Salomão (ou Solomon) Molco, circuncisou-se a si mesmo (quase encontrando a morte) e, fugindo de Portugal, assumiu a sua condição judaica. Na Arábia do século XVI havia judeus e, no entanto, Salomão Molco haveria de fugir de Portugal e morrer às mãos dos inquisidores italianos...

Visionário, cabalista inspirado, assistido por um maggid (um guia celeste) segundo a lenda: um Maggid apareceu-lhe, encorajando-o e guiando-o desde então, numa altura em que ele, desanimado e cansado de perseguições, pediu um sinal aos céus. O maggid dá-lhe indicações para seguir para a Terra Santa.
Passando pela Turquia oriental encontra o Rabi José (Joseph) Taytazak. Este último, tinha-se ali refugiado, fugido de Espanha, na cidade muçulmana de Salónica e aí cumpriu as funções de Rabi-Mor. Salónica era, depois de Safed, o maior centro de cultura judaica da época. Tal como se diz na Enciclopédia Judaica: "Uma nova era para a comunidade começou com a conquista de Salónica por Amurath (1 de Maio de 1430). Aos judeus foram garantidos direitos iguais aos dos outros habitantes não-Muçulmanos, e os seus rabinos foram colocados no mesmo patamar que os líderes espirituais da Igreja Grega. A feliz condição da comunidade judaica salónica nesta época é descrita por Isaac Ẓarfati numa carta dirigida aos judeus da Alemanha, a quem recomenda que emigrem para a Turquia." (Ver Enciclopédia Judaica, entrada "Salónica"). Também em Salónica esteve o nosso Amatus Lusitanus, refugiado de Portugal e de Itália, onde foi médico do Papa Julius III.

Voltando a Molco, na sua passagem por Adrianopole conhece José (Joseph) Caro. Segundo a tradição, tanto Taytazak como Caro foram favorecidos com um Maggid depois da visita de Molco.
O nosso compatriota, Salomão Molco, passou ainda por Safed, onde, tal como nos outros locais por onde passou, deixou forte impressão. Misteriosamente, regressa a Roma, a "cidade iníqua", onde é aclamado por prever com exactidão a cheia do Tibre (a 8 de Outubro de 1530). Ele e Reubeni conversam com o cruel Carlos V em Ratisbona. Ambos foram presos e levados para Itália. Molco foi condenado à morte, considerado renegado da fé católica, levado para Mântua. Com as chamas lentas já a arder, ainda perguntaram se ele queria reintegrar a fé católica em troca da sua vida. Molco morreu judeu.
A morte deste cabalista e misterioso português causou um choque tremendo em toda a comunidade judaica. Em Safed dizia-se que por lá aparecia Molco todos os fins de tarde de Sexta-feira, entoando a benção do Kiddush sobre um copo de vinho.
Uma nota muito interessante para portugueses interessados nos seus: ainda em 1923, a comunidade judaica de Praga tinha em sua posse uma capa de seda preta e uma bandeira de seda preta que pertenceram ao nosso Salomão Molco. Na bandeira estavam bordados, em seda amarela, vinte e três versículos da Bíblia hebraica, dezanove dos quais retirados dos Salmos.
Depois da morte de Molco, o maggid de Caro começou a aparecer com mais frequência.

Bibliografia:
para além de outras referências bibliográficas, é bastante interessante a peça de Edmond Fleg: Le Juif du Pape.


quinta-feira, 30 de abril de 2009

Sábios portugueses das três tradições (V)

Leão Hebreu: uma cabala filosófica

יהודה בן יצחק אברבנאל, Yehuda ben Yitzhak Abravanel ou simplesmente Judá Abravanel, filho de Isaac Abravanel (que referimos na entrada anterior em torno dos sábios portugueses das três tradições, nasceu em Lisboa cerca de 1465 (e terá morrido em 1523 em Itália) e ficou conhecido como Leão Hebreu. Escreveu os famosos Diálogos de Amor. Nestes diálogos, Fílon vai conversando com Sofia; é, portanto, o verdadeiro diálogo filosófico (filo-sofia, o amor dialoga e procura a sabedoria).
No Renascimento, estamos já numa época em que os homens necessitam muito das circunvoluções do raciocínio para chegarem a "ver", isto é, para chegarem à intelecção. É por esta razão que cresce exponencialmente o números de escritos filosóficos. Todavia, neste período de desvio do essencial através de uma postura arrogante do homem perante o mundo natural e sobrenatural, homens houve que serviram de farol para o mais importante, sem conceder. É este o caso de Leão Hebreu que, bem fundado na educação judaica, preservou e perpetuou o tesouro mais importante dessa tradição envolvendo-a na forma de um neoplatonismo, mais aparente do que real, porque na verdade Leão Hebreu é o conciliador notável do platonismo e do aristotelismo, que ele vê como dois aspectos do mesmo: "O divino Platão, querendo ampliar a ciência, arrancou-lhe uma fechadura, que foi a do verso, mas não tirou a outra da fábula. Assim que ele foi o primeiro que rompeu parte da lei da conservação da ciência. Mas deixou-a de tal maneira fechada com o estilo fabuloso, que bastou para a conservação dela. Aristóteles, mais atrevido e cobiçoso da ampliação, com novo e próprio modo e estilo no dizer, quis tirar também a fechadura da fábula e romper totalmente a lei conservativa. E falou das coisas da filosofia em estilo científico e em prosa." (sensivelmente a meio do Diálogo segundo). Esta concepção superior de Leão Hebreu, que respira acima da mediocridade das discussões habituais dos que escrevem sobre filosofia (não me refiro aos filósofos, mas apenas aos que vivem deles...), não pode deixar de nos deixar boquiabertos. Platão e Aristóteles estavam na posse do segredo, do mesmo segredo. Neste diálogo segundo, Leão Hebreu, um pouco antes da citação anterior, dá-nos uma explicação das razões por que se deve preservar o segredo, é esta razão que ilumina inteiramente a citação anterior e de que retiro apenas isto: "Por isso, nos tempos antigos, encerravam os segredos do conhecimento intelectual dentro das cascas das fábulas com grandíssimo artifício para que não pudesse entrar dentro senão o engenho apto para as coisas divinas e intelectuais e a mente conservativa das verdadeiras ciências e não a corruptiva das mesmas." Meu Deus, como é alto este espírito de Leão Hebreu e como é notável a sua educação e a escola ou yeshiva em que se fez! Confesso que ao ler os diálogos, várias vezes verto lágrimas de entusiasmo e de pena. Como são maléficos os que mandam nos portugueses... É aceitável que se expulse gente desta? D0 melhor que a humanidade tem?

Mas esta entrada existe por outra razão; queria apenas lembrar que vale a pena ler os diálogos tomando atenção ao facto de que a doutrina que lhe faz o coração, o núcleo mais íntimo, é cabalista e, mas isso ficará talvez para outra ocasião, cristã. Apenas algumas citações à volta da cabala:

"Agrada-me ver-te tornar Platão moisaico e do número dos cabalistas."

"Mas dizem ter uma coisa e outra por disciplina divina, não só de Moisés, dador da lei divina, mas desde Adão, de quem por tradição de boca, tradição que não se escrevia, chamada cábala em língua hebraica. A palavra cábala quer dizer recepção. Veio do sábio Henoc, e de Henoc ao famoso Noé. Este, depois do dilúvio, pela sua invenção do vinho, foi chamado Jano, porque Jano em hebreu quer dizer vinho. E pintam-no com duas caras, uma atrás e outra adiante, porque viu o que havia antes do dilúvio e o que foi depois dele. Este deixou a cábala com outras muitas notícias divinas e humanas, ao mais sábio de seus filhos, Sem, e a seu descendente Heber, que foram mestres de Abraão, chamado hebreu, graças a Heber, seu antecessor e mestre. E também viu a Noé, pois este morreu, sendo Abraão de ciquenta e nove anos. De Abraão, por sucessão de Isaac e de Jacob, e de Levi, veio a tradição, segundo dizem os sábios dos hebreus, chamados cabalistas."

Para terminar, numa vocação que não se encerra apenas nos limites estritamente superficiais de uma tradição, assim nos mostra Leão Hebreu como no íntimo das tradições verdadeiras há sempre uma porta para uma liberdade superior, onde através dos cultos, mas acima deles, os sabios se podem encontrar. Trata-se da noção de Jubileu: "naquele ano [de Jobel ou Jubileu] tinha de haver perfeita quietude de todas as coisas, assim terrestres como negociativas, e todo o escravo alcançava liberdade"; "O texto diz: no ano de Jubileu todas as coisas voltarão a sua origem e raiz; a liberdade apregoar-se-á na Terra."

Aqui fica mais um dos nossos, dos nossos maiores portugueses que, como tantas vezes, dentro ou fora do país, se vêem constrangidos ao fecundo e simbólico exílio, a partir do qual deixam marca profunda na ingrata cultura europeia.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

O lamento de um cristão andaluz


Estamos em pleno no século IX (!); não se sabe ainda hoje o modo como decorreram as chamadas "invasões árabes", embora se saiba já que não se trataram de "invasões", e provavelmente também não de "árabes", ao contrário do que quiseram fazer crer as primeiras (bastante tardias) crónicas.
Córdova era uma pérola, de longe a cidade mais bela da Península (rivalizava, sendo considerada superior, com Bagdade) e também a mais sábia (só uma das suas bibliotecas contava centenas de milhares de livros: para se ter ideia, uma excelente biblioteca cristã teria umas poucas centenas). O espírito a que erradamente se chama tolerante, sobretudo durante o califado de Córdova antes de se começar a dissolver em taifas (que significa "facções"), era o de uma permuta constante. Sem nada impor, a cultura islâmica acabou por se tornar a mais atraente, a mais desejada; tudo isto decorria apenas do fascínio natural dos atributos divinos que nela resplandeciam: a beleza da sua arte (desde a arquitectura às vestes), a bondade da sua personalidade (a irmandade de cultos tinha um lugar que hoje dificilmente se pode imaginar, aumentada pelo convívio e pela miscigenação dos povos) e o estímulo da sabedoria ("procurai a sabedoria ainda que na China", diz o Profeta Maomé).
As cidades portuguesas, como Mértola ou Silves, belas, viviam, no entanto, à sombra de Córdova, como um arbusto resplandecente abrigado pela copa de uma árvore frondosa. O nosso patriotismo não nos pode fazer perder pé e não necessitamos de ser os melhores e os mais belos do mundo para que estejamos perto de Deus. Não nos podemos esquecer que muitas vezes o excesso de desenvolvimento da arte caiu num desequilíbrio que levou à superficialidade dos sentidos, à estesia do deslumbramento da aparência. Sempre a discreção e a humildade corresponderam à verdadeira posição do sábio.

Naquele século IX de Córdova um cristão com o nome Paulo Álvaro de Córdova, muito conhecido na sua época, descreve na sua obra Index Luminoso (Indiculus Luminosus) a sociedade cordovesa daquela altura, lamentando-se e quase invejando o esplendor da cultura muçulmana. Os termos são estes:

"Os cristãos amam ler os poemas e os romances árabes; estudam os teólogos e os filósofos árabes, não para os contestar, mas para adquirir um árabe correcto e elegante. Ainda existirá um leigo que possa ler os comentários das Santas Escrituras em latim, ou que se consagre ao estudo dos Evangelhos, Profetas ou Apóstolos? Ah! É com entusiasmo que os jovens cristãos lêem e estudam as obras árabes; reúnem a um preço caríssimo enormes bibliotecas; desprezam a literatura cristã, acham que não é digna de atenção. Esqueceram a sua própria língua. Para cada homem capaz de escrever a um amigo uma carta em latim, um milhar sabe escrever elegantemente em árabe, e redigir nesta língua melhores poemas que os próprios Árabes."

Este excerto, que se refere ao século IX, nunca é demais recordar, é muito fecundo. Não é possível aqui, neste espaço, esboçar sequer um comentário, mas queria apenas chamar a atenção para o seguinte: o importante aqui não é tanto salientar a superioridade ou inferioridade das culturas na relação umas com as outras, mas sobretudo extrapolar e imaginar que esta ambiência era também a que se vivia naquele que viria a ser o território português. Portugal não pode esquecer o legado que tem de sabedoria viva e que é o fruto de um acentuado convívio entre três tradições e culturas. Foi devido a uma época como esta que puderam acontecer os Descobrimentos. Os espanhóis nunca tiveram vocação para navegadores, ao contrário dos portugueses. Os portugueses descobriram ou chegaram aos quatro continentes e os espanhóis descobriram por engano a América, por um marrano que provavelmente era português. A nossa vocação é de miscigenação, também aqui ao contrário dos castelhanos. E a Andaluzia foi a expressão de uma cultura miscigenada no seu esplendor. Nesta época era frequente o casamento entre cristãos, muçulmanos e judeus (embora sobretudo entre os dois primeiros, por razões inerentes à própria cultura judaica). Em boa parte destes casamentos, cada um mantinha a sua religião (apesar disto, há um Cardeal que acredita que só hoje estamos a dar "os primeiros passos" do "diálogo" entre cristãos e muçulmanos...). Mas este período foi, de facto, uma idade de ouro que deu as condições, por exemplo, para que os sábios judeus pudessem começar um trabalho magnífico que depois viriam a acabar na clandestinidade. Possamos tomar como modelo estes tempos gloriosos, porque os tempos que se avizinham, se as diferentes escrituras falam verdade, exigi-lo-ão. Havemos de ser chamados a repetir superiormente a nossa missão civilizacional.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

O rei português e a santa espanhola ou D. Sebastião e santa Teresa de Ávila


Dom Sebastião e santa Teresa de Ávila foram contemporâneos. Nada os ligava, aparentemente, a não ser talvez isto que creio não ser muito conhecido:
"Revela Deos a Santa Teresa, e a outros justos a salvação dos que morreraõ na batalha; os sinaes, que a precederaõ." Assim se intitula o capítulo XXXVI do Livro II da Historia Sebastica, contém a vida do augusto principe o senhor D. Sebastiaõ, Rey de Portugal, e os sucessos memoraveis do reyno, e Conquistas no seu tempo, dedicada a elrey n. senhor D. João V.
Esta obra é da autoria de Fr. Manoel dos Santos, benedictino cisterciense do mosteiro de Alcobaça, de 1735.

Retrato d’El Rei Dom Sebastião. Finais do Séc. XVI
ou inicio do Séc. XVII, patente na Câmara dos Azuis.


No interessante capítulo acima referido se diz que a morte do principe foi considerada "o mayor infortunio do nosso Reyno, depois da fundaçaõ delle, pelo Santo (sic!) Rey Dom Affonso Henriques, até aquelle tempo". Continua dizendo que os portugueses estavam habituados a sempre vencer "os infieis" e nunca a ser vencidos. Maus hábitos, pois. Isto me faz lembrar que passeando um dia em Marrocos, conversando com um guia que me conduzia à fortaleza portuguesa da encantadora cidade de Essauira, e perguntando-lhe se já ouvira falar em D. Sebastião e na batalha de Alcácer Quibir, ele me respondeu com ar vitorioso que sim, que a batalha era muito recordada entre eles e mesmo na escola era um episódio sempre retratado. Aquele ar de vitória deixou-me um pouco inquieto, mas essa impressão logo passou para segundo plano quando me disse, de seguida, que o nosso principe era visto como um herói numa certa lenda que corria entre eles e que até havia um filme sobre a batalha. Interessadíssimo por tudo isto combinei que no dia seguinte nos encontraríamos para que ele me desse a referência do filme e outras referências sobre essa lenda que entretanto pudesse reunir. Para minha pena não apareceu no dia seguinte e não mais o vi.
Mas voltemos ao livro do nosso beneditino; ali ele explica que há quem diga que a derrota se deveu a um castigo pelos nossos pecados; ele, contudo, sem a negar, não perfilha essa opinião e é de crer que tudo aconteceu para salvação das almas "dos que morreraõ pelejando", conforme "revelou Christo Senhor nosso a sua ternissima Esposa a Virgem Santa Teresa de Jesus". E agora dou a palavra ao beneditino:

"Estava no seu Convento de Toledo a Santa Virgem, e ao mesmo dia 4 de Agosto, e na mesma hora, em que foy a batalha, lhe revelou o Senhor o sucesso, que a fez romper em copiosas lagrymas nascidas do seu grande desejo de ver prosperada a Christandade, e humilhados os inimigos da Igreja, que via estar triunfantes; e queixando-se amorosamente, lhe respondeu o Senhor que naõ chorasse; porque naõ havia motivo de sentimento, mas louvasse ao Eterno Pay de misericordias, porque salvára aos que morreraõ naquella campanha: da qual reposta alegre a Santa, naõ só deu a Deos as devidas graças prostrada na Divina presença, mas se affeiçoou aos Portuguezes com toda a Alma, como a homens de tanta piedade, que até aos seus Soldados achava prudentes a morte, e prevenidos com[o?] as Virgens prudentes para gozarem das eternas bodas. " Esta Santa Teresa não nos lembra a Vénus d'Os Lusíadas? E o Eterno Pay não nos recorda Júpiter?

Mas prossigamos; o frade cita a própria santa logo de seguida. Tem particular interesse este trecho em que a santa diz que, depois de Deus lhe revelar a grande estima que tem pelos portugueses e por esta Nação, "me sobrevinieron tan grandes deseos de ir fundar algunas Casas de nuestro Carmelo reformado en aquel Reyno". Deus lhe diz, no entanto, que ela não viria fundar aqui os conventos, "mas iran tus hijas". E agora Deus lhe diz que fundando estes conventos em Portugal queria assim poder "suspender el castigo que le di". Afinal, os portugueses que morreram na batalha foram salvos, mas o castigo, contra o que dizia o frade, existe.
Existe e não se terão talvez fundado conventos suficientes, pois ainda hoje penamos, debruçados sob o jugo do castigo pelos nossos muitos pecados.


Teresa de Ávila por Rubens


sábado, 28 de março de 2009

Portugal: as elites esquecidas e o povo adormecido

Não há outra forma de conhecer Portugal a não ser partindo dos sinais a que temos acesso. Desde o Romantismo que se procura estudar o Portugal popular, os costumes do povo. Esta tendência chegou aos dias de hoje e tem feito esquecer o estudo das elites do nosso pensamento. De um modo despretensioso, tenho procurado aqui apenas lembrar algumas personalidades que, muitas vezes de um modo discreto, deixaram, no entanto, marcas profundas. É esse o caso dos mestres de Ibn 'Arabî já referidos em entradas anteriores. Há outras personalidades, como Abravanel, que tiveram uma importância social imensa, desde logo pelas funções que desempenharam. Não é possível, num blogue, ir mais longe do que apenas indicar, sugerir, lembrar. Nos tempos de hoje, já não é pouco.

Outro aspecto fundamental para se conhecer o Portugal misterioso e único em que vivemos é o conhecimento das religiões tal como elas aqui se plasmaram. Não me refiro tanto a estudos como os de Leite Vasconcelos que, sendo muito importantes, já não nos dão a perspectiva vivente que necessitamos para realmente procurarmos quem somos naquilo que fomos.

Estou convencido que mais importante é o estudo das tradições a que no Islamismo se chamam do Livro. É claro que há outros livros sagrados, mas Deus diz no Corão que só revelou a Maomé alguns dos profetas; os outros livros sagrados não dizem respeito à nossa tradição que vem de Abraão / Ibraim. É por isso que se pode entre nós dizer "o Livro", por antonomásia: esse livro é aquele que vem a ser escrito desde a Tora, os Salmos, os Evangelhos (ou o próprio Cristo, o logos) e o Corão.

Parece que os portugueses andam adormecidos e uma das principais razões parece ser a falta de memória; a outra é o preconceito; o contrário do que foram nos seus melhores dias... Se soubessem a responsabilidade que têm no mundo, tudo mudaria.


quinta-feira, 19 de março de 2009

Sábios portugueses das três tradições (IV)


Isaac Abravanel: uma interpretação do Quinto Império



Isaac Abravanel (1437-1508), nasceu em Lisboa e morreu em Veneza, tendo sido enterrado no cemitério judeu de Pádua. Foi homem de acção - conselheiro político de várias cortes e financeiro - e também homem de contemplação - filósofo, comentador da Bíblia e messianista. Aquele que nos importa aqui é apenas o homem de contemplação, autor de comentários à Bíblia, ao Guia dos Perplexos de Maimónides e, entre vários outros livros, autor de As Fontes da Redenção.
É neste último livro que encontramos a refutação da interpretação cristã do sonho de Nabucodonosor. O leitor está lembrado da descri ção da estátua com cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e coxas de bronze, pernas de ferro e pés compostos por uma parte de ferro e outra de barro. Para Abravanel a cabeça de ouro é a Babilónia, os braços e o peito de prata são a Pérsia e a Média, o seu ventre e coxas são a Grécia, as pernas de ferro são Roma e os pés são, respectivamente, a parte de ferro os cristãos e a parte de barro os muçulmanos. O quinto império que permanecerá para sempre, é, naturalmente, interpretado como Israel. E aquela pedra que vem pulverizar a estátua, antes da instauração do quinto império, é o Decreto divino que se manifesta contra a Cristandade e o Islão

A argumentação de Isaac Abravanel, para a identificação do quinto império, é na verdade bem engenhosa: este império que permanecerá para sempre só pode ser um império de uma nação que, ao contrário de todas as outras, não detinha nenhum território próprio. Esta especificidade seria a marca essêncial de Israel.

Interpretando os quatro montros da visão de Daniel, identifica o último com Roma. Os seus pés são os reis de Roma, os dentes de ferro, os consules romanos, os dez cornos, são os imperadores romanos, o pequeno corno é o papado, porque pretende trazer uma nova ciência da Escritura que substitui a judaica e introduz elementos estranhos (Abravanel diz "monstruosos") como a Trindade e a Incarnação; por outro lado, vem ainda trazer um novo calendário, alterando o calendário judaico e pretende abolir os preceitos da Torah. Se pensarmos ainda que no Evangelho se diz que a salvação vem pelos judeus e que Cristo diz que não vem alterar um Yod ao mosaísmo e se a isto acrescentarmos que os judeus recusaram Cristo e Maomé, podemos estar seguros de que aqui se esconde um grande mistério, mas também de que a sua natureza seja outra que não a da competição por um império, mas a de uma iluminação da humanidade. Não podemos agora desenvolver este aspecto, mas S ampaio Bruno há-de ter ainda uma palavra a dizer sobre tudo isto.

A influência de Abravanel foi grande: marcou, pelas suas ideias messianistas, o Maharal de Praga; Salomão Molkho ou Molcho foi apoiado pelos descendentes de Abravanel; os doutrinadores do Sabataísmo referem-se-lhe. No século XIX há um reencontro da Europa com os seus comentários bíblicos: Mendelssohn, Samuel David Luzzatto e Meir Leib Malbim - todos se lhe referem.

Bibliografia: como é habitual temos de recorrer ao estrangeiro para as referências mais importantes aos grandes de Portugal. A bibliografia que refiro dis respeito apenas a livros em minha posse.
Roland Goetschel, Isaac Abravanel: conseiller des princes et philosophe, Albin Michel, 1996.
Isaac Abravanel, Commentaire du récit de la création, Vedier, 1999. Este livro de Abravanel traduzido para francês, ao contrário do que é costume nesta belíssima colecção da Verdier, intitulada Les Dix Paroles, não é dotada sequer de uma introdução explicativa... estranha-se o trabalho de esta magnífica tradução em contraste com a ausência de uma nota introdutória, que fica reduzi
da a uma nótula da contra-capa.


Nota: quando vamos nós, os portugueses, voltar a lembrar aqueles que são nossos? Peço ao leitor que aprecie bem estes selos e tire daí as suas conclusões: o que é que não lhe soa bem? Os selos não são portugueses, pois não? Foram emitidos em 1992 para comemorar o quinto aniversário da descoberta da América. [Sim, é verdade, no selo da direita diz mesmo Issac...] O retrato é a representação tradicional de Abravanel.

sábado, 7 de março de 2009

Esquecer a história: o que disse um cardeal

Paroaria Coronata (vulgo Cardeal)
Naturalmente, já passou. Ninguém recorda as declarações do Cardeal; porém, a mim parece-me preferível deixar o tempo passar e ver o que é que fica daquilo que passou.
O que ali mais me deu, e dá ainda, que pensar, uma vez que não fiquei "chocado" (o que é que ainda nos pode chocar?), não foi a referência aos casamentos com muçulmanos, mas outra coisa, quer dizer, aquilo que verdadeiramente me impressionou e até assustou foi o facto de o Sr. Cardeal ter afirmado que estavam agora "a dar os primeiros passos" no diálogo com o Islão. Esta afirmação parece ter passado despercebida a toda a gente e, no entanto, foi a declaração que mais deveria ter "chocado" as almas sensíveis que logo acorreram prontas a atacar tudo quanto diga respeito à religião: seja porque entendiam que o Sr. Cardeal era reaccionário, seja porque entendiam que os muçulmanos são brutos com as mulheres - mas tudo apenas para que, por um ou outro lado, pudessem atacar a religião.*
Uma declaração destas parece demonstrar uma estranha insensibilidade (prefiro pensar que não é ignorância) em alguém que desempenha funções muito importantes dentro da hierarquia do clero da Igreja. O Islão existe há mil e quatrocentos anos e, em muitos países, cristãos, judeus e muçulmanos têm sido vizinhos de porta (literalmente). Portugal é um destes países. Não se entende como é que o Sr. Cardeal possa ter passado ao lado ou por cima da riquíssima história multi-secular que une e separa as duas religiões. É como se de repente o Islão tivesse aparecido em Portugal apenas há uns anos.
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* Não devemos fazer comparações absurdas e apressadas entre civilizações. A verdade, no entanto, é que os muçulmanos têm, em muitos casos, esquecido aquilo que deviam lembrar: por exemplo, que numa altura em que, na Europa, se discutia ainda se a mulher tinha ou não alma, já no século VII os muçulmanos tinham reconhecido o direito de propriedade da mulher; numa altura em que a mulher era, na Europa, considerada a fonte do pecado, já a mulher muçulmana (de resto, como a judia) era culta (por exemplo, escrevia poesia).

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Sábios portugueses das três tradições (III)


Albotini, um cabalista português em Jerusalém


Rabi Yehudah (ou Judá) ben Rabbi Moshe Albotini (ou Albutini), foi Rabi em Jerusalém entre 1500 e 1520. Discípulo do famoso cabalista Abraão Abuláfia, escreveu um manual místico em que se baseava no ensino deste último: Sefer Sulam ha-Aliya, A Escada da Ascensão. Sobre ele diz Moshe Idel em Os Cabalistas da Noite: "Outro cabalista extático que recorria a uma técnica onírica era R. Yehudah Albotini, um autor de origem portuguesa activo na Jerusalém do início do século XVI. Halaquista [i.e., intérprete da lei judaica, n.t.] notável, compôs um dos mais sistemáticos manuais de cabala extática, titulado Sullam ha-'Aliyah. Ao tratar das técnicas que visam alcançar uma experiência extática, este cabalista está bem ciente que alguns perigos espreitam o praticante; propõe, por isso, que quem pretenda servir-se das técnicas que ele aprendeu no livro de Abraão Abuláfia, deve, antes de o fazer, assegurar-se de que tem permissão celeste para tal. Havia o receio de que, conhecendo os nomes divinos, alguém tentasse servir-se deles para fins mágicos ou escatológicos. A permissão celeste poderia ser obtida recorrendo à técnica já mencionada: she'elat Halom [o sonho-resposta, n.t.]." In Moshe Idel, Os Cabalistas da Noite, Pena Perfeita, 2006.

Sobre a separação entre o corpo e a alma diz o seguinte:

"Depois destes diversos preparativos [ascéticos], quando estás prestes a conversar com o teu Criador, liberta os teus pensamentos de toda a mundaneidade. Põe o xaile de oração, se possível põe os teus tefilim nas mãos e na cabeça, para que temas a Shekinah que está contigo nesse instante [...], senta-te e põe junto a ti tinta, uma pena e papel e começa a combinar letras a toda a velocidade e com o espírito exultante. [...] A finalidade é separar a alma [do corpo] e purificá-la de todas as formas e coisas corporais que a oprimem, despi-la para que concentres o teu coração, o teu intelecto e a tua alma sobre a forma inteligível ou sobre o conhecimento ou sobre a questão que colocaste e para a qual esperas uma resposta de Deus, bendito seja." In Charles Mopsik, Cabale et Cabalistes, Bayard, 1997, pp. 207-208.

De seguida descreve o caminho que a alma deve fazer, patamar a patamar, vendo-se na presença do Altíssimo com os seus anjos e querubins, tremendo de medo.

Tudo isto tinha uma seriedade imensa e integrava-se numa tradição que, por assim dizer, "protegia" o cabalista. Se, mesmo assim, protegido como estava e sempre acompanhado de um mestre experiente, o cabalista corria perigos imensos no seguimento das suas operações e meditações teúrgicas, pode calcular o leitor os perigos que correm hoje quantos percorrem os trilhos pretensos de uma "cabala" amansada ao jeito moderno.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Sábios portugueses das três tradições (II)


Abu 'Imrân al-Mîrtûlî, um outro mestre português de Ibn 'Arabî


Al-Mîrtûlî, isto é, de Mértola, foi um outro mestre de Ibn 'Arabî. Não teve a mesma importância de al-'Uryanî, no entanto, dele o sufi de Murcia conta alguns episódios bastante interessantes; um desses episódios permite-nos perceber o tipo de liberdade que havia na relação discipular no sufismo ocidental, muito diferente da estrutura mais rígida do Oriente (voltaremos a este interessante tema numa outra oportunidade).

O jovem Ibn 'Arabî andava atormentado por um estado de perplexidade de que não conseguia sair; consultou o seu primeiro mestre al-'Uryanî, que lhe respondeu nestes termos simples e desconcertantes: «Meu companheiro, ocupa-te com Deus!» Ainda dominado pelo mesmo estado de alma, foi procurar al-Mîrtûlî e consultou-o a propósito do mesmo assunto; este respondeu-lhe por estes termos: «Ocupa-te da tua alma!». Perturbado, Ibn 'Arabî exclamou interrogativamente: «Como é possível que Sheykh al-'Uryanî me tenha dito para me ocupar com Deus e tu para me ocupar com a minha alma?» Al-Mîrtûlî respondeu emocionado: «Al-'Uryanî dirigiu-te para Deus, e o regresso é para Ele. Cada um de nós respondeu-te de acordo com o seu estado espiritual. Que Deus me permita alcançar a estação de al-'Uryanî. Por isso, ouve-o a ele, que será melhor para ti e para mim.» Tendo saído dali, Ibn 'Arabî dirigiu-se a casa de al-'Uryanî e contou-lhe tudo o que se tinha passado. Este respondeu-lhe assim: «Ele indicou-te o caminho, enquanto eu te indiquei o Companheiro. Deves, por isso, agir de acordo com o que ele te indicou e com o que eu te indiquei.»

O método do mestre de Mértola parece ter sido sobretudo o de uma intensa ascese. Segundo Ibn 'Arabî ele seria um dos três homens, que em cada época existem, que são assitidos por Deus para depois se voltarem para as criaturas para e, por sua vez, lhes prestarem assistência, dando o que receberam. Homens como o mestre de Mértola nada querem para si mesmos, tudo pedem para os outros.
«A sua energia espiritual, diz ainda Ibn 'Arabî ilustrando o que ficou dito, estava unida a Deus com o intuito de me proteger de seduções e regressões». «Este mestre foi um místico de grande vida interior, de contemplação perfeita, dotado de uma consciência extraordinariamente escrupulosa, sempre concentrado em si (...)».

Ibn 'Arabî refere pelo menos dois outros portugueses do seu conhecimento no livro sobre a vida dos sufis andaluzes referido na entrada anterior; deixo aqui apenas os seus nomes: Abû 'Abd b. al-'Âs o de Beja e Abû 'Abd Allâh b. Zayd o de Évora.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Sábios portugueses das três tradições (I)

Aqui se dá início a uma rubrica que pretende, de um modo despretensioso, lembrar alguns sábios portugueses das três tradições que têm por tronco comum Abraão: o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo.


Al'Uryanî, um mestre português de Ibn 'Arabî

Nós fomos o extremo ocidental do Andaluz, prolongado até D. Dinis; aqui nasceram e por aqui passaram sufis que deixaram marcas profundas no Islão. Ibn 'Arabî, um dos maiores sufis de todos os tempos, nascido em Murcia no século XII, teve como primeiro mestre Abu Ya'far al'Uryanî [ou Uryabî] de Loulé. Este grande mestre português influenciou profundamente Ibn 'Arabî; um dos aspectos em que o marcou foi na prática do dhikr Allah.
Ibn 'Arabî descreve assim o seu primeiro encontro:

"De entre todos os meus mestres, o primeiro a quem encontrei no caminho de Deus foi Abu Ya'far al'Uryanî. Chegou a Sevilha, onde vivíamos, quando eu começava a iniciar-me no conhecimento deste sublime método de perfeição espiritual, e fui um dos que se apressaram a aproximar-se dele. Fui, pois, visitá-lo e deparei com um homem completamente entregue à prática da oração mental." Mais à frente o sufi de Murcia conta ainda que "este mestre era um camponês iletrado que não sabia escrever nem contar; mas quando falava sobre a ciência da unificação, só nos restava ouvi-lo. Apenas com a intenção, fixava as ideias como se as tivesse consignado por escrito, e com a sua palavra punha a descoberto a realidade dos seres. Nunca o verias senão a praticar a oração mental, previamente purificado com a ablução ritual e orientado em direcção ao templo da Ka'aba."

Ibn 'Arabî conta ainda que al'Uryanî era "um homem de muita meditação e sempre pleno de alegria em todos os estados da sua relação espiritual com Deus." Um dos aspectos mais interessantes, entre muitas histórias maravilhosas que Ibn 'Arabî conta, é o da sua relação com aquela personagem enigmática que no Islão se chama Khidr. Mas a história mais terna que dele conta o Sheykh é a seguinte: havia um mestre que tinha uma gata preta em que ninguém conseguia sequer tocar, por ser muito selvagem; sobre ela dizia o mestre: "Deus deu-me com esta gata um meio de distinguir os amigos de Deus." Com efeito, só a estes a gata se mostrava afável. Um dia, al'Uryanî entrou em casa deste mestre... mas passo antes a palavra a Ibn 'Arabî, que narra o episódio: "A gata estava escondida no último quarto da casa; olhou-o antes que ele se sentasse, e enquanto o mestre lhe dizia: «Senta-te», deu a gata um salto e, estirando-se no peito de al'Uryanî , abriu as patas dianteiras, abraçou-o e começou a passar e repassar a sua cabeça nas barbas de al'Uryanî." E assim ficou a até que al'Uryanî se levantou para sair. Contou depois o mestre, emocionado, que nunca a gata fizera tal cena com ninguém. A estima e a admiração de Ibn 'Arabî pelo seu primeiro mestre, "português", era imensa, como por estes relatos se vê.

[Bibliografia: Miguel Asín Palacios, Vidas de santones andaluces; Claude Addas, Quest for the red sulphur: the life of Ibn 'Arabî]

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Por dentro

Lanças ao alto, um cristão e um muçulmano jogam xadrez persa
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Sim, é só "por dentro" que nos podemos entender. É pela mística, pelo esoterismo, pelo lado íntimo das religiões; naquele lugar de alma em que cada um de nós pode encontrar o melhor de si, que é já Ele.
Se partíssemos desse lugar que temos em nós, ou que nos tem a nós, então poderíamos conversar como sempre fizeram aqueles que se entenderam desde dentro.
Não significa que todos vejamos o mesmo Deus; Ele aparecer-nos-á, diz Ibn 'Arabî, na forma que trazemos na alma. Saibamos, no entanto, que para lá da forma há Deus em si mesmo; cultuemos Deus pela forma, mas sem nunca esquecer que, para lá dela, está Ele, Esse de que nunca conheceremos talvez a realidade, a não ser por Ele mesmo, pois a realidade é Ele.

Não devemos ter medo a não ser dele e é nele que nos devemos refugiar. O medo, diz o Zohar, é o princípio do conhecimento. Quem está aí que tema Deus?

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Tradições Abraâmicas

Somos herdeiros das três tradições abraâmicas. Temos um dever a cumprir e os da filosofia portuguesa têm-se esquecido disso.
A nossa teologia popular (porque a erudita não é nossa, mas de Roma ou França) não coloca a tónica na pessoa de Cristo, por essa razão dá mais destaque ao seu lado humano e menos ao seu lado de Deus.
Se só compreendemos verdadeiramente aquilo que criámos, então temos de olhar livremente para a nossa tradição e procurar compreender como compreenderam aqueles que a criaram.

A nossa cristologia popular é de tal modo que permite estabelecer a ponte fecunda entre o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Vemos Jesus como o rabi dos rabis, que não vem alterar a lei de Moisés. Vemos Jesus como aquele que, prolongando a lei de Moisés, desvelou o seu esoterismo e talvez tenha sido morto por isso. Vemos Jesus ainda como o profeta mais Santo, mas não o último dos profetas, porque nós, portugueses, ansiamos ainda pela revelação das revelações, isto é, aquele livro que vem completar a Torah, que vem selar os Evangelhos e cumprir o Corão: não será um livro, mas o Verbo.

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O nosso modo de olhar

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"não se entende nunca bem senão aquilo que se cria".

Sampaio Bruno, A Ideia de Deus
(também citado por Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa)

Teologia portuguesa

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"A teologia, em Portugal, não é exclusiva nem predominantemente cristologia."

Álvaro Ribeiro, Apologia e Filosofia

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Três tradições

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"Três tradições concorrem na formação do pensamento português:
a judaica, a cristã e a islâmica."
Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar