quinta-feira, 9 de abril de 2009

O rei português e a santa espanhola ou D. Sebastião e santa Teresa de Ávila


Dom Sebastião e santa Teresa de Ávila foram contemporâneos. Nada os ligava, aparentemente, a não ser talvez isto que creio não ser muito conhecido:
"Revela Deos a Santa Teresa, e a outros justos a salvação dos que morreraõ na batalha; os sinaes, que a precederaõ." Assim se intitula o capítulo XXXVI do Livro II da Historia Sebastica, contém a vida do augusto principe o senhor D. Sebastiaõ, Rey de Portugal, e os sucessos memoraveis do reyno, e Conquistas no seu tempo, dedicada a elrey n. senhor D. João V.
Esta obra é da autoria de Fr. Manoel dos Santos, benedictino cisterciense do mosteiro de Alcobaça, de 1735.

Retrato d’El Rei Dom Sebastião. Finais do Séc. XVI
ou inicio do Séc. XVII, patente na Câmara dos Azuis.


No interessante capítulo acima referido se diz que a morte do principe foi considerada "o mayor infortunio do nosso Reyno, depois da fundaçaõ delle, pelo Santo (sic!) Rey Dom Affonso Henriques, até aquelle tempo". Continua dizendo que os portugueses estavam habituados a sempre vencer "os infieis" e nunca a ser vencidos. Maus hábitos, pois. Isto me faz lembrar que passeando um dia em Marrocos, conversando com um guia que me conduzia à fortaleza portuguesa da encantadora cidade de Essauira, e perguntando-lhe se já ouvira falar em D. Sebastião e na batalha de Alcácer Quibir, ele me respondeu com ar vitorioso que sim, que a batalha era muito recordada entre eles e mesmo na escola era um episódio sempre retratado. Aquele ar de vitória deixou-me um pouco inquieto, mas essa impressão logo passou para segundo plano quando me disse, de seguida, que o nosso principe era visto como um herói numa certa lenda que corria entre eles e que até havia um filme sobre a batalha. Interessadíssimo por tudo isto combinei que no dia seguinte nos encontraríamos para que ele me desse a referência do filme e outras referências sobre essa lenda que entretanto pudesse reunir. Para minha pena não apareceu no dia seguinte e não mais o vi.
Mas voltemos ao livro do nosso beneditino; ali ele explica que há quem diga que a derrota se deveu a um castigo pelos nossos pecados; ele, contudo, sem a negar, não perfilha essa opinião e é de crer que tudo aconteceu para salvação das almas "dos que morreraõ pelejando", conforme "revelou Christo Senhor nosso a sua ternissima Esposa a Virgem Santa Teresa de Jesus". E agora dou a palavra ao beneditino:

"Estava no seu Convento de Toledo a Santa Virgem, e ao mesmo dia 4 de Agosto, e na mesma hora, em que foy a batalha, lhe revelou o Senhor o sucesso, que a fez romper em copiosas lagrymas nascidas do seu grande desejo de ver prosperada a Christandade, e humilhados os inimigos da Igreja, que via estar triunfantes; e queixando-se amorosamente, lhe respondeu o Senhor que naõ chorasse; porque naõ havia motivo de sentimento, mas louvasse ao Eterno Pay de misericordias, porque salvára aos que morreraõ naquella campanha: da qual reposta alegre a Santa, naõ só deu a Deos as devidas graças prostrada na Divina presença, mas se affeiçoou aos Portuguezes com toda a Alma, como a homens de tanta piedade, que até aos seus Soldados achava prudentes a morte, e prevenidos com[o?] as Virgens prudentes para gozarem das eternas bodas. " Esta Santa Teresa não nos lembra a Vénus d'Os Lusíadas? E o Eterno Pay não nos recorda Júpiter?

Mas prossigamos; o frade cita a própria santa logo de seguida. Tem particular interesse este trecho em que a santa diz que, depois de Deus lhe revelar a grande estima que tem pelos portugueses e por esta Nação, "me sobrevinieron tan grandes deseos de ir fundar algunas Casas de nuestro Carmelo reformado en aquel Reyno". Deus lhe diz, no entanto, que ela não viria fundar aqui os conventos, "mas iran tus hijas". E agora Deus lhe diz que fundando estes conventos em Portugal queria assim poder "suspender el castigo que le di". Afinal, os portugueses que morreram na batalha foram salvos, mas o castigo, contra o que dizia o frade, existe.
Existe e não se terão talvez fundado conventos suficientes, pois ainda hoje penamos, debruçados sob o jugo do castigo pelos nossos muitos pecados.


Teresa de Ávila por Rubens