quinta-feira, 30 de abril de 2009

Sábios portugueses das três tradições (V)

Leão Hebreu: uma cabala filosófica

יהודה בן יצחק אברבנאל, Yehuda ben Yitzhak Abravanel ou simplesmente Judá Abravanel, filho de Isaac Abravanel (que referimos na entrada anterior em torno dos sábios portugueses das três tradições, nasceu em Lisboa cerca de 1465 (e terá morrido em 1523 em Itália) e ficou conhecido como Leão Hebreu. Escreveu os famosos Diálogos de Amor. Nestes diálogos, Fílon vai conversando com Sofia; é, portanto, o verdadeiro diálogo filosófico (filo-sofia, o amor dialoga e procura a sabedoria).
No Renascimento, estamos já numa época em que os homens necessitam muito das circunvoluções do raciocínio para chegarem a "ver", isto é, para chegarem à intelecção. É por esta razão que cresce exponencialmente o números de escritos filosóficos. Todavia, neste período de desvio do essencial através de uma postura arrogante do homem perante o mundo natural e sobrenatural, homens houve que serviram de farol para o mais importante, sem conceder. É este o caso de Leão Hebreu que, bem fundado na educação judaica, preservou e perpetuou o tesouro mais importante dessa tradição envolvendo-a na forma de um neoplatonismo, mais aparente do que real, porque na verdade Leão Hebreu é o conciliador notável do platonismo e do aristotelismo, que ele vê como dois aspectos do mesmo: "O divino Platão, querendo ampliar a ciência, arrancou-lhe uma fechadura, que foi a do verso, mas não tirou a outra da fábula. Assim que ele foi o primeiro que rompeu parte da lei da conservação da ciência. Mas deixou-a de tal maneira fechada com o estilo fabuloso, que bastou para a conservação dela. Aristóteles, mais atrevido e cobiçoso da ampliação, com novo e próprio modo e estilo no dizer, quis tirar também a fechadura da fábula e romper totalmente a lei conservativa. E falou das coisas da filosofia em estilo científico e em prosa." (sensivelmente a meio do Diálogo segundo). Esta concepção superior de Leão Hebreu, que respira acima da mediocridade das discussões habituais dos que escrevem sobre filosofia (não me refiro aos filósofos, mas apenas aos que vivem deles...), não pode deixar de nos deixar boquiabertos. Platão e Aristóteles estavam na posse do segredo, do mesmo segredo. Neste diálogo segundo, Leão Hebreu, um pouco antes da citação anterior, dá-nos uma explicação das razões por que se deve preservar o segredo, é esta razão que ilumina inteiramente a citação anterior e de que retiro apenas isto: "Por isso, nos tempos antigos, encerravam os segredos do conhecimento intelectual dentro das cascas das fábulas com grandíssimo artifício para que não pudesse entrar dentro senão o engenho apto para as coisas divinas e intelectuais e a mente conservativa das verdadeiras ciências e não a corruptiva das mesmas." Meu Deus, como é alto este espírito de Leão Hebreu e como é notável a sua educação e a escola ou yeshiva em que se fez! Confesso que ao ler os diálogos, várias vezes verto lágrimas de entusiasmo e de pena. Como são maléficos os que mandam nos portugueses... É aceitável que se expulse gente desta? D0 melhor que a humanidade tem?

Mas esta entrada existe por outra razão; queria apenas lembrar que vale a pena ler os diálogos tomando atenção ao facto de que a doutrina que lhe faz o coração, o núcleo mais íntimo, é cabalista e, mas isso ficará talvez para outra ocasião, cristã. Apenas algumas citações à volta da cabala:

"Agrada-me ver-te tornar Platão moisaico e do número dos cabalistas."

"Mas dizem ter uma coisa e outra por disciplina divina, não só de Moisés, dador da lei divina, mas desde Adão, de quem por tradição de boca, tradição que não se escrevia, chamada cábala em língua hebraica. A palavra cábala quer dizer recepção. Veio do sábio Henoc, e de Henoc ao famoso Noé. Este, depois do dilúvio, pela sua invenção do vinho, foi chamado Jano, porque Jano em hebreu quer dizer vinho. E pintam-no com duas caras, uma atrás e outra adiante, porque viu o que havia antes do dilúvio e o que foi depois dele. Este deixou a cábala com outras muitas notícias divinas e humanas, ao mais sábio de seus filhos, Sem, e a seu descendente Heber, que foram mestres de Abraão, chamado hebreu, graças a Heber, seu antecessor e mestre. E também viu a Noé, pois este morreu, sendo Abraão de ciquenta e nove anos. De Abraão, por sucessão de Isaac e de Jacob, e de Levi, veio a tradição, segundo dizem os sábios dos hebreus, chamados cabalistas."

Para terminar, numa vocação que não se encerra apenas nos limites estritamente superficiais de uma tradição, assim nos mostra Leão Hebreu como no íntimo das tradições verdadeiras há sempre uma porta para uma liberdade superior, onde através dos cultos, mas acima deles, os sabios se podem encontrar. Trata-se da noção de Jubileu: "naquele ano [de Jobel ou Jubileu] tinha de haver perfeita quietude de todas as coisas, assim terrestres como negociativas, e todo o escravo alcançava liberdade"; "O texto diz: no ano de Jubileu todas as coisas voltarão a sua origem e raiz; a liberdade apregoar-se-á na Terra."

Aqui fica mais um dos nossos, dos nossos maiores portugueses que, como tantas vezes, dentro ou fora do país, se vêem constrangidos ao fecundo e simbólico exílio, a partir do qual deixam marca profunda na ingrata cultura europeia.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

O lamento de um cristão andaluz


Estamos em pleno no século IX (!); não se sabe ainda hoje o modo como decorreram as chamadas "invasões árabes", embora se saiba já que não se trataram de "invasões", e provavelmente também não de "árabes", ao contrário do que quiseram fazer crer as primeiras (bastante tardias) crónicas.
Córdova era uma pérola, de longe a cidade mais bela da Península (rivalizava, sendo considerada superior, com Bagdade) e também a mais sábia (só uma das suas bibliotecas contava centenas de milhares de livros: para se ter ideia, uma excelente biblioteca cristã teria umas poucas centenas). O espírito a que erradamente se chama tolerante, sobretudo durante o califado de Córdova antes de se começar a dissolver em taifas (que significa "facções"), era o de uma permuta constante. Sem nada impor, a cultura islâmica acabou por se tornar a mais atraente, a mais desejada; tudo isto decorria apenas do fascínio natural dos atributos divinos que nela resplandeciam: a beleza da sua arte (desde a arquitectura às vestes), a bondade da sua personalidade (a irmandade de cultos tinha um lugar que hoje dificilmente se pode imaginar, aumentada pelo convívio e pela miscigenação dos povos) e o estímulo da sabedoria ("procurai a sabedoria ainda que na China", diz o Profeta Maomé).
As cidades portuguesas, como Mértola ou Silves, belas, viviam, no entanto, à sombra de Córdova, como um arbusto resplandecente abrigado pela copa de uma árvore frondosa. O nosso patriotismo não nos pode fazer perder pé e não necessitamos de ser os melhores e os mais belos do mundo para que estejamos perto de Deus. Não nos podemos esquecer que muitas vezes o excesso de desenvolvimento da arte caiu num desequilíbrio que levou à superficialidade dos sentidos, à estesia do deslumbramento da aparência. Sempre a discreção e a humildade corresponderam à verdadeira posição do sábio.

Naquele século IX de Córdova um cristão com o nome Paulo Álvaro de Córdova, muito conhecido na sua época, descreve na sua obra Index Luminoso (Indiculus Luminosus) a sociedade cordovesa daquela altura, lamentando-se e quase invejando o esplendor da cultura muçulmana. Os termos são estes:

"Os cristãos amam ler os poemas e os romances árabes; estudam os teólogos e os filósofos árabes, não para os contestar, mas para adquirir um árabe correcto e elegante. Ainda existirá um leigo que possa ler os comentários das Santas Escrituras em latim, ou que se consagre ao estudo dos Evangelhos, Profetas ou Apóstolos? Ah! É com entusiasmo que os jovens cristãos lêem e estudam as obras árabes; reúnem a um preço caríssimo enormes bibliotecas; desprezam a literatura cristã, acham que não é digna de atenção. Esqueceram a sua própria língua. Para cada homem capaz de escrever a um amigo uma carta em latim, um milhar sabe escrever elegantemente em árabe, e redigir nesta língua melhores poemas que os próprios Árabes."

Este excerto, que se refere ao século IX, nunca é demais recordar, é muito fecundo. Não é possível aqui, neste espaço, esboçar sequer um comentário, mas queria apenas chamar a atenção para o seguinte: o importante aqui não é tanto salientar a superioridade ou inferioridade das culturas na relação umas com as outras, mas sobretudo extrapolar e imaginar que esta ambiência era também a que se vivia naquele que viria a ser o território português. Portugal não pode esquecer o legado que tem de sabedoria viva e que é o fruto de um acentuado convívio entre três tradições e culturas. Foi devido a uma época como esta que puderam acontecer os Descobrimentos. Os espanhóis nunca tiveram vocação para navegadores, ao contrário dos portugueses. Os portugueses descobriram ou chegaram aos quatro continentes e os espanhóis descobriram por engano a América, por um marrano que provavelmente era português. A nossa vocação é de miscigenação, também aqui ao contrário dos castelhanos. E a Andaluzia foi a expressão de uma cultura miscigenada no seu esplendor. Nesta época era frequente o casamento entre cristãos, muçulmanos e judeus (embora sobretudo entre os dois primeiros, por razões inerentes à própria cultura judaica). Em boa parte destes casamentos, cada um mantinha a sua religião (apesar disto, há um Cardeal que acredita que só hoje estamos a dar "os primeiros passos" do "diálogo" entre cristãos e muçulmanos...). Mas este período foi, de facto, uma idade de ouro que deu as condições, por exemplo, para que os sábios judeus pudessem começar um trabalho magnífico que depois viriam a acabar na clandestinidade. Possamos tomar como modelo estes tempos gloriosos, porque os tempos que se avizinham, se as diferentes escrituras falam verdade, exigi-lo-ão. Havemos de ser chamados a repetir superiormente a nossa missão civilizacional.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

O rei português e a santa espanhola ou D. Sebastião e santa Teresa de Ávila


Dom Sebastião e santa Teresa de Ávila foram contemporâneos. Nada os ligava, aparentemente, a não ser talvez isto que creio não ser muito conhecido:
"Revela Deos a Santa Teresa, e a outros justos a salvação dos que morreraõ na batalha; os sinaes, que a precederaõ." Assim se intitula o capítulo XXXVI do Livro II da Historia Sebastica, contém a vida do augusto principe o senhor D. Sebastiaõ, Rey de Portugal, e os sucessos memoraveis do reyno, e Conquistas no seu tempo, dedicada a elrey n. senhor D. João V.
Esta obra é da autoria de Fr. Manoel dos Santos, benedictino cisterciense do mosteiro de Alcobaça, de 1735.

Retrato d’El Rei Dom Sebastião. Finais do Séc. XVI
ou inicio do Séc. XVII, patente na Câmara dos Azuis.


No interessante capítulo acima referido se diz que a morte do principe foi considerada "o mayor infortunio do nosso Reyno, depois da fundaçaõ delle, pelo Santo (sic!) Rey Dom Affonso Henriques, até aquelle tempo". Continua dizendo que os portugueses estavam habituados a sempre vencer "os infieis" e nunca a ser vencidos. Maus hábitos, pois. Isto me faz lembrar que passeando um dia em Marrocos, conversando com um guia que me conduzia à fortaleza portuguesa da encantadora cidade de Essauira, e perguntando-lhe se já ouvira falar em D. Sebastião e na batalha de Alcácer Quibir, ele me respondeu com ar vitorioso que sim, que a batalha era muito recordada entre eles e mesmo na escola era um episódio sempre retratado. Aquele ar de vitória deixou-me um pouco inquieto, mas essa impressão logo passou para segundo plano quando me disse, de seguida, que o nosso principe era visto como um herói numa certa lenda que corria entre eles e que até havia um filme sobre a batalha. Interessadíssimo por tudo isto combinei que no dia seguinte nos encontraríamos para que ele me desse a referência do filme e outras referências sobre essa lenda que entretanto pudesse reunir. Para minha pena não apareceu no dia seguinte e não mais o vi.
Mas voltemos ao livro do nosso beneditino; ali ele explica que há quem diga que a derrota se deveu a um castigo pelos nossos pecados; ele, contudo, sem a negar, não perfilha essa opinião e é de crer que tudo aconteceu para salvação das almas "dos que morreraõ pelejando", conforme "revelou Christo Senhor nosso a sua ternissima Esposa a Virgem Santa Teresa de Jesus". E agora dou a palavra ao beneditino:

"Estava no seu Convento de Toledo a Santa Virgem, e ao mesmo dia 4 de Agosto, e na mesma hora, em que foy a batalha, lhe revelou o Senhor o sucesso, que a fez romper em copiosas lagrymas nascidas do seu grande desejo de ver prosperada a Christandade, e humilhados os inimigos da Igreja, que via estar triunfantes; e queixando-se amorosamente, lhe respondeu o Senhor que naõ chorasse; porque naõ havia motivo de sentimento, mas louvasse ao Eterno Pay de misericordias, porque salvára aos que morreraõ naquella campanha: da qual reposta alegre a Santa, naõ só deu a Deos as devidas graças prostrada na Divina presença, mas se affeiçoou aos Portuguezes com toda a Alma, como a homens de tanta piedade, que até aos seus Soldados achava prudentes a morte, e prevenidos com[o?] as Virgens prudentes para gozarem das eternas bodas. " Esta Santa Teresa não nos lembra a Vénus d'Os Lusíadas? E o Eterno Pay não nos recorda Júpiter?

Mas prossigamos; o frade cita a própria santa logo de seguida. Tem particular interesse este trecho em que a santa diz que, depois de Deus lhe revelar a grande estima que tem pelos portugueses e por esta Nação, "me sobrevinieron tan grandes deseos de ir fundar algunas Casas de nuestro Carmelo reformado en aquel Reyno". Deus lhe diz, no entanto, que ela não viria fundar aqui os conventos, "mas iran tus hijas". E agora Deus lhe diz que fundando estes conventos em Portugal queria assim poder "suspender el castigo que le di". Afinal, os portugueses que morreram na batalha foram salvos, mas o castigo, contra o que dizia o frade, existe.
Existe e não se terão talvez fundado conventos suficientes, pois ainda hoje penamos, debruçados sob o jugo do castigo pelos nossos muitos pecados.


Teresa de Ávila por Rubens