sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Sábios portugueses das três tradições (I)

Aqui se dá início a uma rubrica que pretende, de um modo despretensioso, lembrar alguns sábios portugueses das três tradições que têm por tronco comum Abraão: o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo.


Al'Uryanî, um mestre português de Ibn 'Arabî

Nós fomos o extremo ocidental do Andaluz, prolongado até D. Dinis; aqui nasceram e por aqui passaram sufis que deixaram marcas profundas no Islão. Ibn 'Arabî, um dos maiores sufis de todos os tempos, nascido em Murcia no século XII, teve como primeiro mestre Abu Ya'far al'Uryanî [ou Uryabî] de Loulé. Este grande mestre português influenciou profundamente Ibn 'Arabî; um dos aspectos em que o marcou foi na prática do dhikr Allah.
Ibn 'Arabî descreve assim o seu primeiro encontro:

"De entre todos os meus mestres, o primeiro a quem encontrei no caminho de Deus foi Abu Ya'far al'Uryanî. Chegou a Sevilha, onde vivíamos, quando eu começava a iniciar-me no conhecimento deste sublime método de perfeição espiritual, e fui um dos que se apressaram a aproximar-se dele. Fui, pois, visitá-lo e deparei com um homem completamente entregue à prática da oração mental." Mais à frente o sufi de Murcia conta ainda que "este mestre era um camponês iletrado que não sabia escrever nem contar; mas quando falava sobre a ciência da unificação, só nos restava ouvi-lo. Apenas com a intenção, fixava as ideias como se as tivesse consignado por escrito, e com a sua palavra punha a descoberto a realidade dos seres. Nunca o verias senão a praticar a oração mental, previamente purificado com a ablução ritual e orientado em direcção ao templo da Ka'aba."

Ibn 'Arabî conta ainda que al'Uryanî era "um homem de muita meditação e sempre pleno de alegria em todos os estados da sua relação espiritual com Deus." Um dos aspectos mais interessantes, entre muitas histórias maravilhosas que Ibn 'Arabî conta, é o da sua relação com aquela personagem enigmática que no Islão se chama Khidr. Mas a história mais terna que dele conta o Sheykh é a seguinte: havia um mestre que tinha uma gata preta em que ninguém conseguia sequer tocar, por ser muito selvagem; sobre ela dizia o mestre: "Deus deu-me com esta gata um meio de distinguir os amigos de Deus." Com efeito, só a estes a gata se mostrava afável. Um dia, al'Uryanî entrou em casa deste mestre... mas passo antes a palavra a Ibn 'Arabî, que narra o episódio: "A gata estava escondida no último quarto da casa; olhou-o antes que ele se sentasse, e enquanto o mestre lhe dizia: «Senta-te», deu a gata um salto e, estirando-se no peito de al'Uryanî , abriu as patas dianteiras, abraçou-o e começou a passar e repassar a sua cabeça nas barbas de al'Uryanî." E assim ficou a até que al'Uryanî se levantou para sair. Contou depois o mestre, emocionado, que nunca a gata fizera tal cena com ninguém. A estima e a admiração de Ibn 'Arabî pelo seu primeiro mestre, "português", era imensa, como por estes relatos se vê.

[Bibliografia: Miguel Asín Palacios, Vidas de santones andaluces; Claude Addas, Quest for the red sulphur: the life of Ibn 'Arabî]

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