Aqui se dá início a uma rubrica que pretende, de um modo despretensioso, lembrar alguns sábios portugueses das três tradições que têm por tronco comum Abraão: o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo.
Al'Uryanî, um mestre português de Ibn 'Arabî

Ibn 'Arabî descreve assim o seu primeiro encontro:
"De entre todos os meus mestres, o primeiro a quem encontrei no caminho de Deus foi Abu Ya'far al'Uryanî. Chegou a Sevilha, onde vivíamos, quando eu começava a iniciar-me no conhecimento deste sublime método de perfeição espiritual, e fui um dos que se apressaram a aproximar-se dele. Fui, pois, visitá-lo e deparei com um homem completamente entregue à prática da oração mental." Mais à frente o sufi de Murcia conta ainda que "este mestre era um camponês iletrado que não sabia escrever nem contar; mas quando falava sobre a ciência da unificação, só nos restava ouvi-lo. Apenas com a intenção, fixava as ideias como se as tivesse consignado por escrito, e com a sua palavra punha a descoberto a realidade dos seres. Nunca o verias senão a praticar a oração mental, previamente purificado com a ablução ritual e orientado em direcção ao templo da Ka'aba."Ibn 'Arabî conta ainda que al'Uryanî era "um homem de muita meditação e sempre pleno de alegria em todos os estados da sua relação espiritual com Deus." Um dos aspectos mais interessantes, entre muitas histórias maravilhosas que Ibn 'Arabî conta, é o da sua relação com aquela personagem enigmática que no Islão se chama Khidr. Mas a história mais terna que dele conta o Sheykh é a seguinte: havia um mestre que tinha uma gata preta em que ninguém conseguia sequer tocar, por ser muito selvagem; sobre ela dizia o mestre: "Deus deu-me com esta gata um meio de distinguir os amigos de Deus." Com efeito, só a estes a gata se mostrava afável. Um dia, al'Uryanî entrou em casa deste mestre... mas passo antes a palavra a Ibn 'Arabî, que narra o episódio: "A gata estava escondida no último quarto da casa; olhou-o antes que ele se sentasse, e enquanto o mestre lhe dizia: «Senta-te», deu a gata um salto e, estirando-se no peito de al'Uryanî , abriu as patas dianteiras, abraçou-o e começou a passar e repassar a sua cabeça nas barbas de al'Uryanî." E assim ficou a até que al'Uryanî se levantou para sair. Contou depois o mestre, emocionado, que nunca a gata fizera tal cena com ninguém. A estima e a admiração de Ibn 'Arabî pelo seu primeiro mestre, "português", era imensa, como por estes relatos se vê.
[Bibliografia: Miguel Asín Palacios, Vidas de santones andaluces; Claude Addas, Quest for the red sulphur: the life of Ibn 'Arabî]
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