sábado, 28 de março de 2009

Portugal: as elites esquecidas e o povo adormecido

Não há outra forma de conhecer Portugal a não ser partindo dos sinais a que temos acesso. Desde o Romantismo que se procura estudar o Portugal popular, os costumes do povo. Esta tendência chegou aos dias de hoje e tem feito esquecer o estudo das elites do nosso pensamento. De um modo despretensioso, tenho procurado aqui apenas lembrar algumas personalidades que, muitas vezes de um modo discreto, deixaram, no entanto, marcas profundas. É esse o caso dos mestres de Ibn 'Arabî já referidos em entradas anteriores. Há outras personalidades, como Abravanel, que tiveram uma importância social imensa, desde logo pelas funções que desempenharam. Não é possível, num blogue, ir mais longe do que apenas indicar, sugerir, lembrar. Nos tempos de hoje, já não é pouco.

Outro aspecto fundamental para se conhecer o Portugal misterioso e único em que vivemos é o conhecimento das religiões tal como elas aqui se plasmaram. Não me refiro tanto a estudos como os de Leite Vasconcelos que, sendo muito importantes, já não nos dão a perspectiva vivente que necessitamos para realmente procurarmos quem somos naquilo que fomos.

Estou convencido que mais importante é o estudo das tradições a que no Islamismo se chamam do Livro. É claro que há outros livros sagrados, mas Deus diz no Corão que só revelou a Maomé alguns dos profetas; os outros livros sagrados não dizem respeito à nossa tradição que vem de Abraão / Ibraim. É por isso que se pode entre nós dizer "o Livro", por antonomásia: esse livro é aquele que vem a ser escrito desde a Tora, os Salmos, os Evangelhos (ou o próprio Cristo, o logos) e o Corão.

Parece que os portugueses andam adormecidos e uma das principais razões parece ser a falta de memória; a outra é o preconceito; o contrário do que foram nos seus melhores dias... Se soubessem a responsabilidade que têm no mundo, tudo mudaria.


quinta-feira, 19 de março de 2009

Sábios portugueses das três tradições (IV)


Isaac Abravanel: uma interpretação do Quinto Império



Isaac Abravanel (1437-1508), nasceu em Lisboa e morreu em Veneza, tendo sido enterrado no cemitério judeu de Pádua. Foi homem de acção - conselheiro político de várias cortes e financeiro - e também homem de contemplação - filósofo, comentador da Bíblia e messianista. Aquele que nos importa aqui é apenas o homem de contemplação, autor de comentários à Bíblia, ao Guia dos Perplexos de Maimónides e, entre vários outros livros, autor de As Fontes da Redenção.
É neste último livro que encontramos a refutação da interpretação cristã do sonho de Nabucodonosor. O leitor está lembrado da descri ção da estátua com cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e coxas de bronze, pernas de ferro e pés compostos por uma parte de ferro e outra de barro. Para Abravanel a cabeça de ouro é a Babilónia, os braços e o peito de prata são a Pérsia e a Média, o seu ventre e coxas são a Grécia, as pernas de ferro são Roma e os pés são, respectivamente, a parte de ferro os cristãos e a parte de barro os muçulmanos. O quinto império que permanecerá para sempre, é, naturalmente, interpretado como Israel. E aquela pedra que vem pulverizar a estátua, antes da instauração do quinto império, é o Decreto divino que se manifesta contra a Cristandade e o Islão

A argumentação de Isaac Abravanel, para a identificação do quinto império, é na verdade bem engenhosa: este império que permanecerá para sempre só pode ser um império de uma nação que, ao contrário de todas as outras, não detinha nenhum território próprio. Esta especificidade seria a marca essêncial de Israel.

Interpretando os quatro montros da visão de Daniel, identifica o último com Roma. Os seus pés são os reis de Roma, os dentes de ferro, os consules romanos, os dez cornos, são os imperadores romanos, o pequeno corno é o papado, porque pretende trazer uma nova ciência da Escritura que substitui a judaica e introduz elementos estranhos (Abravanel diz "monstruosos") como a Trindade e a Incarnação; por outro lado, vem ainda trazer um novo calendário, alterando o calendário judaico e pretende abolir os preceitos da Torah. Se pensarmos ainda que no Evangelho se diz que a salvação vem pelos judeus e que Cristo diz que não vem alterar um Yod ao mosaísmo e se a isto acrescentarmos que os judeus recusaram Cristo e Maomé, podemos estar seguros de que aqui se esconde um grande mistério, mas também de que a sua natureza seja outra que não a da competição por um império, mas a de uma iluminação da humanidade. Não podemos agora desenvolver este aspecto, mas S ampaio Bruno há-de ter ainda uma palavra a dizer sobre tudo isto.

A influência de Abravanel foi grande: marcou, pelas suas ideias messianistas, o Maharal de Praga; Salomão Molkho ou Molcho foi apoiado pelos descendentes de Abravanel; os doutrinadores do Sabataísmo referem-se-lhe. No século XIX há um reencontro da Europa com os seus comentários bíblicos: Mendelssohn, Samuel David Luzzatto e Meir Leib Malbim - todos se lhe referem.

Bibliografia: como é habitual temos de recorrer ao estrangeiro para as referências mais importantes aos grandes de Portugal. A bibliografia que refiro dis respeito apenas a livros em minha posse.
Roland Goetschel, Isaac Abravanel: conseiller des princes et philosophe, Albin Michel, 1996.
Isaac Abravanel, Commentaire du récit de la création, Vedier, 1999. Este livro de Abravanel traduzido para francês, ao contrário do que é costume nesta belíssima colecção da Verdier, intitulada Les Dix Paroles, não é dotada sequer de uma introdução explicativa... estranha-se o trabalho de esta magnífica tradução em contraste com a ausência de uma nota introdutória, que fica reduzi
da a uma nótula da contra-capa.


Nota: quando vamos nós, os portugueses, voltar a lembrar aqueles que são nossos? Peço ao leitor que aprecie bem estes selos e tire daí as suas conclusões: o que é que não lhe soa bem? Os selos não são portugueses, pois não? Foram emitidos em 1992 para comemorar o quinto aniversário da descoberta da América. [Sim, é verdade, no selo da direita diz mesmo Issac...] O retrato é a representação tradicional de Abravanel.

sábado, 7 de março de 2009

Esquecer a história: o que disse um cardeal

Paroaria Coronata (vulgo Cardeal)
Naturalmente, já passou. Ninguém recorda as declarações do Cardeal; porém, a mim parece-me preferível deixar o tempo passar e ver o que é que fica daquilo que passou.
O que ali mais me deu, e dá ainda, que pensar, uma vez que não fiquei "chocado" (o que é que ainda nos pode chocar?), não foi a referência aos casamentos com muçulmanos, mas outra coisa, quer dizer, aquilo que verdadeiramente me impressionou e até assustou foi o facto de o Sr. Cardeal ter afirmado que estavam agora "a dar os primeiros passos" no diálogo com o Islão. Esta afirmação parece ter passado despercebida a toda a gente e, no entanto, foi a declaração que mais deveria ter "chocado" as almas sensíveis que logo acorreram prontas a atacar tudo quanto diga respeito à religião: seja porque entendiam que o Sr. Cardeal era reaccionário, seja porque entendiam que os muçulmanos são brutos com as mulheres - mas tudo apenas para que, por um ou outro lado, pudessem atacar a religião.*
Uma declaração destas parece demonstrar uma estranha insensibilidade (prefiro pensar que não é ignorância) em alguém que desempenha funções muito importantes dentro da hierarquia do clero da Igreja. O Islão existe há mil e quatrocentos anos e, em muitos países, cristãos, judeus e muçulmanos têm sido vizinhos de porta (literalmente). Portugal é um destes países. Não se entende como é que o Sr. Cardeal possa ter passado ao lado ou por cima da riquíssima história multi-secular que une e separa as duas religiões. É como se de repente o Islão tivesse aparecido em Portugal apenas há uns anos.
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* Não devemos fazer comparações absurdas e apressadas entre civilizações. A verdade, no entanto, é que os muçulmanos têm, em muitos casos, esquecido aquilo que deviam lembrar: por exemplo, que numa altura em que, na Europa, se discutia ainda se a mulher tinha ou não alma, já no século VII os muçulmanos tinham reconhecido o direito de propriedade da mulher; numa altura em que a mulher era, na Europa, considerada a fonte do pecado, já a mulher muçulmana (de resto, como a judia) era culta (por exemplo, escrevia poesia).