Estamos em pleno no século IX (!); não se sabe ainda hoje o modo como decorreram as chamadas "invasões árabes", embora se saiba já que não se trataram de "invasões", e provavelmente também não de "árabes", ao contrário do que quiseram fazer crer as primeiras (bastante tardias) crónicas.
Córdova era uma pérola, de longe a cidade mais bela da Península (rivalizava, sendo considerada superior, com Bagdade) e também a mais sábia (só uma das suas bibliotecas contava centenas de milhares de livros: para se ter ideia, uma excelente biblioteca cristã teria umas poucas centenas). O espírito a que erradamente se chama tolerante, sobretudo durante o califado de Córdova antes de se começar a dissolver em taifas (que significa "facções"), era o de uma permuta constante. Sem nada impor, a cultura islâmica acabou por se tornar a mais atraente, a mais desejada; tudo isto decorria apenas do fascínio natural dos atributos divinos que nela resplandeciam: a beleza da sua arte (desde a arquitectura às vestes), a bondade da sua personalidade (a irmandade de cultos tinha um lugar que hoje dificilmente se pode imaginar, aumentada pelo convívio e pela miscigenação dos povos) e o estímulo da sabedoria ("procurai a sabedoria ainda que na China", diz o Profeta Maomé).
As cidades portuguesas, como Mértola ou Silves, belas, viviam, no entanto, à sombra de Córdova, como um arbusto resplandecente abrigado pela copa de uma árvore frondosa. O nosso patriotismo não nos pode fazer perder pé e não necessitamos de ser os melhores e os mais belos do mundo para que estejamos perto de Deus. Não nos podemos esquecer que muitas vezes o excesso de desenvolvimento da arte caiu num desequilíbrio que levou à superficialidade dos sentidos, à estesia do deslumbramento da aparência. Sempre a discreção e a humildade corresponderam à verdadeira posição do sábio.
Naquele século IX de Córdova um cristão com o nome Paulo Álvaro de Córdova, muito conhecido na sua época, descreve na sua obra Index Luminoso (Indiculus Luminosus) a sociedade cordovesa daquela altura, lamentando-se e quase invejando o esplendor da cultura muçulmana. Os termos são estes:
"Os cristãos amam ler os poemas e os romances árabes; estudam os teólogos e os filósofos árabes, não para os contestar, mas para adquirir um árabe correcto e elegante. Ainda existirá um leigo que possa ler os comentários das Santas Escrituras em latim, ou que se consagre ao estudo dos Evangelhos, Profetas ou Apóstolos? Ah! É com entusiasmo que os jovens cristãos lêem e estudam as obras árabes; reúnem a um preço caríssimo enormes bibliotecas; desprezam a literatura cristã, acham que não é digna de atenção. Esqueceram a sua própria língua. Para cada homem capaz de escrever a um amigo uma carta em latim, um milhar sabe escrever elegantemente em árabe, e redigir nesta língua melhores poemas que os próprios Árabes."
Este excerto, que se refere ao século IX, nunca é demais recordar, é muito fecundo. Não é possível aqui, neste espaço, esboçar sequer um comentário, mas queria apenas chamar a atenção para o seguinte: o importante aqui não é tanto salientar a superioridade ou inferioridade das culturas na relação umas com as outras, mas sobretudo extrapolar e imaginar que esta ambiência era também a que se vivia naquele que viria a ser o território português. Portugal não pode esquecer o legado que tem de sabedoria viva e que é o fruto de um acentuado convívio entre três tradições e culturas. Foi devido a uma época como esta que puderam acontecer os Descobrimentos. Os espanhóis nunca tiveram vocação para navegadores, ao contrário dos portugueses. Os portugueses descobriram ou chegaram aos quatro continentes e os espanhóis descobriram por engano a América, por um marrano que provavelmente era português. A nossa vocação é de miscigenação, também aqui ao contrário dos castelhanos. E a Andaluzia foi a expressão de uma cultura miscigenada no seu esplendor. Nesta época era frequente o casamento entre cristãos, muçulmanos e judeus (embora sobretudo entre os dois primeiros, por razões inerentes à própria cultura judaica). Em boa parte destes casamentos, cada um mantinha a sua religião (apesar disto, há um Cardeal que acredita que só hoje estamos a dar "os primeiros passos" do "diálogo" entre cristãos e muçulmanos...). Mas este período foi, de facto, uma idade de ouro que deu as condições, por exemplo, para que os sábios judeus pudessem começar um trabalho magnífico que depois viriam a acabar na clandestinidade. Possamos tomar como modelo estes tempos gloriosos, porque os tempos que se avizinham, se as diferentes escrituras falam verdade, exigi-lo-ão. Havemos de ser chamados a repetir superiormente a nossa missão civilizacional.