domingo, 22 de novembro de 2009

Mudanças



Após este interregno, venho comunicar aos leitores que mudámos de casa.
A partir deste momento podem encontrar-nos aqui:


Esperemos que o leitor aprecie a mudança.


Nota
aos seguidores deste blogue: ainda não sei como colocar seguidores na plataforma wordpress; nem sei se será possível - por isto, peço desde já desculpa.

Abdel Hayy

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Reflexões entre Brasil e Portugal

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1. Há quem negue, mas não deixa de ser interessante que o Ceará, uma zona desértica do Brasil, tenha um nome tão semelhante ao deserto magrebino: Sahara. Poderiam os mouriscos, viajando nas caravelas e chegados a uma zona cuja paisagem lhes era tão familiar ter atribuído o único nome que descreve essa imensa aridez ardente na sua língua natal? Será, pois, o Ceará, o Sahara do Brasil?

2. Em Portugal, um pouco por todo o lado, há lendas de mouras encantadas, de tesouros dos mouros, de princesas ou príncipes mouros. Há quem diga que o povo “ignorante” atribui a tudo o que seja antigo o atributo de “mouro”. É um facto, mas isso não explica a razão. A razão deve ser uma só: o povo é o guardião da memória “colectiva” do país e, neste caso, aquilo que ali se guarda é a memória de que houve um tempo maravilhoso que este país viveu, um tempo que foi o do Portugal mourisco e, por isso mesmo, também cristão e judeu. A ingratidão e o complexo do discípulo que quer matar o mestre é que fazem com que se acabe por esquecer entre as elites, aquilo que o povo “sabe” muito bem.

Dirão os eruditos que muitas dessas lendas são mesmo pré-românicas, quanto mais pré-islâmicas. Mas o importante aqui não são as lendas, mas o facto de o povo ter revestido essas lendas (por todo o país, de norte a sul!) com uma veste “moura” e não outra. Só quem tiver perdido um mínimo de objectividade é que pode ficar indiferente à quantidade de lendas ligadas a “mouros”.


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sábado, 18 de julho de 2009

«Uma religião na diversidade de ritos»



M
ehmet II
"Una religio in rituum varietate" era o sonho de Nicolau de Cusa, que chega a propor, em 1453, um concílio universal em Jerusalém que procurasse o reconhecimento e o acordo de todas as confissões religiosas ("uma religião") na "diversidade de ritos".
Já, antes, Raimundo Lullio, que escreveu muitas das suas obras em árabe, afirmara que o islão é a religião mais próxima do cristianismo.
Os exemplos de inteligência universal são muitos nos tempos passados; por que esquecemos o melhor dessa época - aquilo com que verdadeiramente devemos aprender - e lembramos, repetindo, o pior? Hoje, quando se procura o "diálogo" entre religiões, está-se a partir já de um ponto de vista laico, sentindo a religião como algo inferior, algo desprovido de valor em si mesmo e que o "bom senso" dos ateus vem "salvar", apelando à "racionalidade", à "razoabilidade". Este discurso da contemporaneidade é altamente corrosivo. O diálogo entre religiões, se tem de existir, é a partir de dentro delas; quem está fora delas não pode ter a compreensão plena do que se trata e mesmo muitos dos que estão "dentro" são apenas a expressão da sua "fé", presos da crença, incapazes, por isso, de se elevar ao plano do intelecto: único "lugar" em que se podem encontrar aquelas almas como os Cusa ou os Lullio ou os Mehmet II.

Os muçulmanos de hoje podiam também lembrar-se dos seus melhores exemplos: para ficarmos na mesma época, o sultão Mehmet II, entrando em Constantinopla (1453), restaurou (note-se!) o Patriarcado Grego Ortodoxo, rodeou-se de sábios e artistas de toda a Europa, protegeu e interessou-se muito pelo cristianismo (que era a religião da sua mãe!!!) e protegeu os judeus.

E o nosso cardeal que julga que "estamos agora a começar o diálogo" inter-religioso...
A nossa tradição, o melhor dela, está no que retivemos da Andaluzia e no modo como soubemos olhar para as outras tradições; o olhar da Igreja, infelizmente, foi - e não devia! - aprisionante, levou-nos a condenar, a queimar, a estigmatizar muitos dos melhores cristãos, dos melhores judeus e dos melhores muçulmanos. Saibamos voltar a olhar por cima dos telhados: seja a partir da torre sineira da igreja, do minarete da mesquita ou daquela yeshiva que fica no piso superior de uma sinagoga. Na diversidade dos ritos, que se reconheça a adoração do mesmo Deus desconhecido.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Henry Corbin, Prisciliano e uma curiosa sugestão de Asín Palacios

Desta vez, gostaria de chamar a atenção para um texto de Henry Corbin em que, lembrando Asín Palacios, se refere uma curiosa afinidade ou prolongamento interior, por assim dizer, entre o priscilianismo e uma escola do sufismo andaluz. As pistas singelas que aqui vou deixando são como lembretes de uma nossa história íntima, sagrada, escondida, que nenhum historiador, com olhos exteriores apenas para o que julga ser "factual", nunca poderá ver, por muito que olhe.
Não nos importa "provar" nada disto, o essencial é que alguns possam aproximar-se e, "por dentro", retomar a herança do Portugal profundo. Esses passarão sempre despercebidos, longe das pequenas guerrinhas, deliberadamente longe de protagonismos e das luzes do exterior. Falarão entre si, encontrar-se-ão em reuniões esporádicas, em Mértola ou na arrábida de Sesimbra ou na arrábida do Porto, na sinagoga de Tomar ou no mosteiro de Alcobaça ou no dodecaedro de Almeida, ou apenas no café Luz Verde. Ninguém saberá que é a eles que se deve a perpetuação de uma certa "presença".
E agora aqui vai o texto referido:

"A primeira questão que se coloca a propósito de Ibn 'Arabî é a de distinguir qual a parte exacta, antes de abandonar definitivamente o Ocidente islâmico, que ele pôde assimilar do esoterismo ismaelita ou de um esoterismo aparentado. Encontram-se indícios disso na sua familiaridade com a escola de Almería e no facto de ter feito um comentário à única obra que chegou até nós de Ibn Qasî, iniciador do movimento dos Murîdîn, no sul de Portugal, onde se reconhecem muitos traços característicos de inspiração xiita-ismaelita. Devemos ter em conta um fenómeno notável e simultâneo, numa e outra extremidades geográficas do esoterismo islâmico: o papel do ensino de um Empédocles, transfigurado em herói da teosofia profética. Na escola de Almería, na Andaluzia, Asín Palacios revelou com cuidado a importância deste neo-empedoclismo, ao mesmo tempo que se comprazia em ver nos discípulos de Ibn Masarra (ob. 319/931) os continuadores da gnose de Prisciliano. Em simultâneo, no Irão, a influência deste mesmo Empédocles se fez sentir tanto num filósofo correspondente de Avicena, Abû'l-Hasan al-'Amirî, como na cosmogonia de Sohravardî e na do Ismaelismo."

in Henry Corbin, L'imagination créatrice dans le soufisme d'Ibn Arabî. S.l.: Aubier, reed. 1993

Este trecho, talvez excessivamente técnico para alguns, não deixa de ser extremamente sugestivo na fecundidade densa das pistas que abre: de que modo a gnose priscilianista se pode ligar com o sufismo andaluz?

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sábado, 23 de maio de 2009

Sábios portugueses das três tradições (VI)

Salomão Molco e o encontro com o cabalista Joseph Caro


Diogo Pires (Lisboa, 1500 - Mântua, 1532), secretário de D. João III, depois da visita a Lisboa do misterioso David Reubeni, vindo da Arábia, mudou de nome para Salomão (ou Solomon) Molco, circuncisou-se a si mesmo (quase encontrando a morte) e, fugindo de Portugal, assumiu a sua condição judaica. Na Arábia do século XVI havia judeus e, no entanto, Salomão Molco haveria de fugir de Portugal e morrer às mãos dos inquisidores italianos...

Visionário, cabalista inspirado, assistido por um maggid (um guia celeste) segundo a lenda: um Maggid apareceu-lhe, encorajando-o e guiando-o desde então, numa altura em que ele, desanimado e cansado de perseguições, pediu um sinal aos céus. O maggid dá-lhe indicações para seguir para a Terra Santa.
Passando pela Turquia oriental encontra o Rabi José (Joseph) Taytazak. Este último, tinha-se ali refugiado, fugido de Espanha, na cidade muçulmana de Salónica e aí cumpriu as funções de Rabi-Mor. Salónica era, depois de Safed, o maior centro de cultura judaica da época. Tal como se diz na Enciclopédia Judaica: "Uma nova era para a comunidade começou com a conquista de Salónica por Amurath (1 de Maio de 1430). Aos judeus foram garantidos direitos iguais aos dos outros habitantes não-Muçulmanos, e os seus rabinos foram colocados no mesmo patamar que os líderes espirituais da Igreja Grega. A feliz condição da comunidade judaica salónica nesta época é descrita por Isaac Ẓarfati numa carta dirigida aos judeus da Alemanha, a quem recomenda que emigrem para a Turquia." (Ver Enciclopédia Judaica, entrada "Salónica"). Também em Salónica esteve o nosso Amatus Lusitanus, refugiado de Portugal e de Itália, onde foi médico do Papa Julius III.

Voltando a Molco, na sua passagem por Adrianopole conhece José (Joseph) Caro. Segundo a tradição, tanto Taytazak como Caro foram favorecidos com um Maggid depois da visita de Molco.
O nosso compatriota, Salomão Molco, passou ainda por Safed, onde, tal como nos outros locais por onde passou, deixou forte impressão. Misteriosamente, regressa a Roma, a "cidade iníqua", onde é aclamado por prever com exactidão a cheia do Tibre (a 8 de Outubro de 1530). Ele e Reubeni conversam com o cruel Carlos V em Ratisbona. Ambos foram presos e levados para Itália. Molco foi condenado à morte, considerado renegado da fé católica, levado para Mântua. Com as chamas lentas já a arder, ainda perguntaram se ele queria reintegrar a fé católica em troca da sua vida. Molco morreu judeu.
A morte deste cabalista e misterioso português causou um choque tremendo em toda a comunidade judaica. Em Safed dizia-se que por lá aparecia Molco todos os fins de tarde de Sexta-feira, entoando a benção do Kiddush sobre um copo de vinho.
Uma nota muito interessante para portugueses interessados nos seus: ainda em 1923, a comunidade judaica de Praga tinha em sua posse uma capa de seda preta e uma bandeira de seda preta que pertenceram ao nosso Salomão Molco. Na bandeira estavam bordados, em seda amarela, vinte e três versículos da Bíblia hebraica, dezanove dos quais retirados dos Salmos.
Depois da morte de Molco, o maggid de Caro começou a aparecer com mais frequência.

Bibliografia:
para além de outras referências bibliográficas, é bastante interessante a peça de Edmond Fleg: Le Juif du Pape.


quinta-feira, 30 de abril de 2009

Sábios portugueses das três tradições (V)

Leão Hebreu: uma cabala filosófica

יהודה בן יצחק אברבנאל, Yehuda ben Yitzhak Abravanel ou simplesmente Judá Abravanel, filho de Isaac Abravanel (que referimos na entrada anterior em torno dos sábios portugueses das três tradições, nasceu em Lisboa cerca de 1465 (e terá morrido em 1523 em Itália) e ficou conhecido como Leão Hebreu. Escreveu os famosos Diálogos de Amor. Nestes diálogos, Fílon vai conversando com Sofia; é, portanto, o verdadeiro diálogo filosófico (filo-sofia, o amor dialoga e procura a sabedoria).
No Renascimento, estamos já numa época em que os homens necessitam muito das circunvoluções do raciocínio para chegarem a "ver", isto é, para chegarem à intelecção. É por esta razão que cresce exponencialmente o números de escritos filosóficos. Todavia, neste período de desvio do essencial através de uma postura arrogante do homem perante o mundo natural e sobrenatural, homens houve que serviram de farol para o mais importante, sem conceder. É este o caso de Leão Hebreu que, bem fundado na educação judaica, preservou e perpetuou o tesouro mais importante dessa tradição envolvendo-a na forma de um neoplatonismo, mais aparente do que real, porque na verdade Leão Hebreu é o conciliador notável do platonismo e do aristotelismo, que ele vê como dois aspectos do mesmo: "O divino Platão, querendo ampliar a ciência, arrancou-lhe uma fechadura, que foi a do verso, mas não tirou a outra da fábula. Assim que ele foi o primeiro que rompeu parte da lei da conservação da ciência. Mas deixou-a de tal maneira fechada com o estilo fabuloso, que bastou para a conservação dela. Aristóteles, mais atrevido e cobiçoso da ampliação, com novo e próprio modo e estilo no dizer, quis tirar também a fechadura da fábula e romper totalmente a lei conservativa. E falou das coisas da filosofia em estilo científico e em prosa." (sensivelmente a meio do Diálogo segundo). Esta concepção superior de Leão Hebreu, que respira acima da mediocridade das discussões habituais dos que escrevem sobre filosofia (não me refiro aos filósofos, mas apenas aos que vivem deles...), não pode deixar de nos deixar boquiabertos. Platão e Aristóteles estavam na posse do segredo, do mesmo segredo. Neste diálogo segundo, Leão Hebreu, um pouco antes da citação anterior, dá-nos uma explicação das razões por que se deve preservar o segredo, é esta razão que ilumina inteiramente a citação anterior e de que retiro apenas isto: "Por isso, nos tempos antigos, encerravam os segredos do conhecimento intelectual dentro das cascas das fábulas com grandíssimo artifício para que não pudesse entrar dentro senão o engenho apto para as coisas divinas e intelectuais e a mente conservativa das verdadeiras ciências e não a corruptiva das mesmas." Meu Deus, como é alto este espírito de Leão Hebreu e como é notável a sua educação e a escola ou yeshiva em que se fez! Confesso que ao ler os diálogos, várias vezes verto lágrimas de entusiasmo e de pena. Como são maléficos os que mandam nos portugueses... É aceitável que se expulse gente desta? D0 melhor que a humanidade tem?

Mas esta entrada existe por outra razão; queria apenas lembrar que vale a pena ler os diálogos tomando atenção ao facto de que a doutrina que lhe faz o coração, o núcleo mais íntimo, é cabalista e, mas isso ficará talvez para outra ocasião, cristã. Apenas algumas citações à volta da cabala:

"Agrada-me ver-te tornar Platão moisaico e do número dos cabalistas."

"Mas dizem ter uma coisa e outra por disciplina divina, não só de Moisés, dador da lei divina, mas desde Adão, de quem por tradição de boca, tradição que não se escrevia, chamada cábala em língua hebraica. A palavra cábala quer dizer recepção. Veio do sábio Henoc, e de Henoc ao famoso Noé. Este, depois do dilúvio, pela sua invenção do vinho, foi chamado Jano, porque Jano em hebreu quer dizer vinho. E pintam-no com duas caras, uma atrás e outra adiante, porque viu o que havia antes do dilúvio e o que foi depois dele. Este deixou a cábala com outras muitas notícias divinas e humanas, ao mais sábio de seus filhos, Sem, e a seu descendente Heber, que foram mestres de Abraão, chamado hebreu, graças a Heber, seu antecessor e mestre. E também viu a Noé, pois este morreu, sendo Abraão de ciquenta e nove anos. De Abraão, por sucessão de Isaac e de Jacob, e de Levi, veio a tradição, segundo dizem os sábios dos hebreus, chamados cabalistas."

Para terminar, numa vocação que não se encerra apenas nos limites estritamente superficiais de uma tradição, assim nos mostra Leão Hebreu como no íntimo das tradições verdadeiras há sempre uma porta para uma liberdade superior, onde através dos cultos, mas acima deles, os sabios se podem encontrar. Trata-se da noção de Jubileu: "naquele ano [de Jobel ou Jubileu] tinha de haver perfeita quietude de todas as coisas, assim terrestres como negociativas, e todo o escravo alcançava liberdade"; "O texto diz: no ano de Jubileu todas as coisas voltarão a sua origem e raiz; a liberdade apregoar-se-á na Terra."

Aqui fica mais um dos nossos, dos nossos maiores portugueses que, como tantas vezes, dentro ou fora do país, se vêem constrangidos ao fecundo e simbólico exílio, a partir do qual deixam marca profunda na ingrata cultura europeia.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

O lamento de um cristão andaluz


Estamos em pleno no século IX (!); não se sabe ainda hoje o modo como decorreram as chamadas "invasões árabes", embora se saiba já que não se trataram de "invasões", e provavelmente também não de "árabes", ao contrário do que quiseram fazer crer as primeiras (bastante tardias) crónicas.
Córdova era uma pérola, de longe a cidade mais bela da Península (rivalizava, sendo considerada superior, com Bagdade) e também a mais sábia (só uma das suas bibliotecas contava centenas de milhares de livros: para se ter ideia, uma excelente biblioteca cristã teria umas poucas centenas). O espírito a que erradamente se chama tolerante, sobretudo durante o califado de Córdova antes de se começar a dissolver em taifas (que significa "facções"), era o de uma permuta constante. Sem nada impor, a cultura islâmica acabou por se tornar a mais atraente, a mais desejada; tudo isto decorria apenas do fascínio natural dos atributos divinos que nela resplandeciam: a beleza da sua arte (desde a arquitectura às vestes), a bondade da sua personalidade (a irmandade de cultos tinha um lugar que hoje dificilmente se pode imaginar, aumentada pelo convívio e pela miscigenação dos povos) e o estímulo da sabedoria ("procurai a sabedoria ainda que na China", diz o Profeta Maomé).
As cidades portuguesas, como Mértola ou Silves, belas, viviam, no entanto, à sombra de Córdova, como um arbusto resplandecente abrigado pela copa de uma árvore frondosa. O nosso patriotismo não nos pode fazer perder pé e não necessitamos de ser os melhores e os mais belos do mundo para que estejamos perto de Deus. Não nos podemos esquecer que muitas vezes o excesso de desenvolvimento da arte caiu num desequilíbrio que levou à superficialidade dos sentidos, à estesia do deslumbramento da aparência. Sempre a discreção e a humildade corresponderam à verdadeira posição do sábio.

Naquele século IX de Córdova um cristão com o nome Paulo Álvaro de Córdova, muito conhecido na sua época, descreve na sua obra Index Luminoso (Indiculus Luminosus) a sociedade cordovesa daquela altura, lamentando-se e quase invejando o esplendor da cultura muçulmana. Os termos são estes:

"Os cristãos amam ler os poemas e os romances árabes; estudam os teólogos e os filósofos árabes, não para os contestar, mas para adquirir um árabe correcto e elegante. Ainda existirá um leigo que possa ler os comentários das Santas Escrituras em latim, ou que se consagre ao estudo dos Evangelhos, Profetas ou Apóstolos? Ah! É com entusiasmo que os jovens cristãos lêem e estudam as obras árabes; reúnem a um preço caríssimo enormes bibliotecas; desprezam a literatura cristã, acham que não é digna de atenção. Esqueceram a sua própria língua. Para cada homem capaz de escrever a um amigo uma carta em latim, um milhar sabe escrever elegantemente em árabe, e redigir nesta língua melhores poemas que os próprios Árabes."

Este excerto, que se refere ao século IX, nunca é demais recordar, é muito fecundo. Não é possível aqui, neste espaço, esboçar sequer um comentário, mas queria apenas chamar a atenção para o seguinte: o importante aqui não é tanto salientar a superioridade ou inferioridade das culturas na relação umas com as outras, mas sobretudo extrapolar e imaginar que esta ambiência era também a que se vivia naquele que viria a ser o território português. Portugal não pode esquecer o legado que tem de sabedoria viva e que é o fruto de um acentuado convívio entre três tradições e culturas. Foi devido a uma época como esta que puderam acontecer os Descobrimentos. Os espanhóis nunca tiveram vocação para navegadores, ao contrário dos portugueses. Os portugueses descobriram ou chegaram aos quatro continentes e os espanhóis descobriram por engano a América, por um marrano que provavelmente era português. A nossa vocação é de miscigenação, também aqui ao contrário dos castelhanos. E a Andaluzia foi a expressão de uma cultura miscigenada no seu esplendor. Nesta época era frequente o casamento entre cristãos, muçulmanos e judeus (embora sobretudo entre os dois primeiros, por razões inerentes à própria cultura judaica). Em boa parte destes casamentos, cada um mantinha a sua religião (apesar disto, há um Cardeal que acredita que só hoje estamos a dar "os primeiros passos" do "diálogo" entre cristãos e muçulmanos...). Mas este período foi, de facto, uma idade de ouro que deu as condições, por exemplo, para que os sábios judeus pudessem começar um trabalho magnífico que depois viriam a acabar na clandestinidade. Possamos tomar como modelo estes tempos gloriosos, porque os tempos que se avizinham, se as diferentes escrituras falam verdade, exigi-lo-ão. Havemos de ser chamados a repetir superiormente a nossa missão civilizacional.