Leão Hebreu: uma cabala filosóficaיהודה בן יצחק אברבנאל, Yehuda ben Yitzhak Abravanel ou simplesmente Judá Abrava
nel, filho de Isaac Abravanel (que referimos na entrada anterior em torno dos
sábios portugueses das três tradições, nasceu em Lisboa cerca de 1465 (e terá morrido em 1523 em Itália) e ficou conhecido como Leão Hebreu. Escreveu os famosos
Diálogos de Amor. Nestes diálogos, Fílon vai conversando com Sofia; é, portanto, o verdadeiro diálogo filosófico (filo-sofia, o amor dialoga e procura a sabedoria).
No Renascimento, estamos já numa época em que os homens necessitam muito das circunvoluções do raciocínio para chegarem a "ver", isto é, para chegarem à intelecção. É por esta razão que cresce exponencialmente o números de escritos filosóficos. Todavia, neste período de desvio do essencial através de uma postura arrogante do homem perante o mundo natural e sobrenatural, homens houve que serviram de farol para o mais importante, sem conceder. É este o caso de Leão Hebreu que, bem fundado na educação judaica, preservou e perpetuou o tesouro mais importante dessa tradição envolvendo-a na forma de um neoplatonismo, mais aparente do que real, porque na verdade Leão Hebreu é o conciliador notável do platonismo e do aristotelismo, que ele vê como dois aspectos do mesmo: "O divino Platão, querendo ampliar a ciência, arrancou-lhe uma fechadura, que foi a do verso, mas não tirou a outra da fábula. Assim que ele foi o primeiro que rompeu parte da lei da conservação da ciência. Mas deixou-a de tal maneira fechada com o estilo fabuloso, que bastou para a conservação dela. Aristóteles, mais atrevido e cobiçoso da ampliação, com novo e próprio modo e estilo no dizer, quis tirar também a fechadura da fábula e romper totalmente a lei conservativa. E falou das coisas da filosofia em estilo científico e em prosa." (sensivelmente a meio do
Diálogo segundo). Esta concepção superior de Leão Hebreu, que respira acima da mediocridade das discussões habituais dos que escrevem sobre filosofia (não me refiro aos filósofos, mas apenas aos que vivem deles...), não pode deixar de nos deixar boquiabertos. Platão e Aristóteles estavam na posse do segredo, do
mesmo segredo. Neste
diálogo segundo, Leão Hebreu, um pouco antes da citação anterior, dá-nos uma explicação das razões por que se deve preservar o segredo, é esta razão que ilumina inteiramente a citação anterior e de que retiro apenas isto: "Por isso, nos tempos antigos, encerravam os segredos do conhecimento intelectual dentro das cascas das fábulas com grandíssimo artifício para que não pudesse entrar dentro senão o engenho apto para as coisas divinas e intelectuais e a mente conservativa das verdadeiras ciências e não a corruptiva das mesmas." Meu Deus, como é alto este espírito de Leão Hebreu e como é notável a sua educação e a escola ou
yeshiva em que se fez! Confesso que ao ler os diálogos, várias vezes verto lágrimas de entusiasmo e de pena. Como são maléficos os que mandam nos portugueses... É aceitável que se expulse gente desta? D0 melhor que a humanidade tem?
Mas esta entrada existe por outra razão; queria apenas lembrar que vale a pena ler os
diálogos tomando atenção ao facto de que a doutrina que lhe faz o coração, o núcleo mais íntimo, é cabalista e, mas isso ficará talvez para outra ocasião, cristã. Apenas algumas citações à volta da cabala:
"Agrada-me ver-te tornar Platão moisaico e do número dos cabalistas."
"Mas dizem ter uma coisa e outra por disciplina divina, não só de
Moisés, dador da lei divina, mas desde
Adão, de quem por tradição de boca, tradição que não se escrevia, chamada
cábala em língua hebraica. A palavra
cábala quer dizer recepção. Veio do sábio
Henoc, e de
Henoc ao famoso
Noé. Este, depois do dilúvio, pela sua invenção do vinho, foi chamado
Jano, porque
Jano em hebreu quer dizer
vinho. E pintam-no com duas caras, uma atrás e outra adiante, porque viu o que havia antes do dilúvio e o que foi depois dele. Este deixou a
cábala com outras muitas notícias divinas e humanas, ao mais sábio de seus filhos,
Sem, e a seu descendente
Heber, que foram mestres de
Abraão, chamado
hebreu, graças a
Heber, seu antecessor e mestre. E também viu a
Noé, pois este morreu, sendo
Abraão de ciquenta e nove anos. De
Abraão, por sucessão de
Isaac e de
Jacob, e de
Levi, veio a tradição, segundo dizem os sábios dos hebreus, chamados cabalistas."
Para terminar, numa vocação que não se encerra apenas nos limites estritamente superficiais de uma tradição, assim nos mostra Leão Hebreu como no íntimo das tradições verdadeiras há sempre uma porta para uma liberdade superior, onde através dos cultos, mas acima deles, os sabios se podem encontrar. Trata-se da noção de
Jubileu: "naquele ano [de
Jobel ou
Jubileu] tinha de haver perfeita quietude de todas as coisas, assim terrestres como negociativas, e todo o escravo alcançava liberdade"; "O texto diz: no ano de
Jubileu todas as coisas voltarão a sua origem e raiz; a liberdade apregoar-se-á na Terra."
Aqui fica mais um dos nossos, dos nossos maiores portugueses que, como tantas vezes, dentro ou fora do país, se vêem constrangidos ao fecundo e simbólico exílio, a partir do qual deixam marca profunda na ingrata cultura europeia.